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terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Lacan e novas estruturas


Introdução


Ao longo de nosso conteúdo, acompanhamos as elucubrações lacanianas a respeito de Real, Simbólico e Imaginário. Pudemos perceber que a clínica é um lugar de objeto vivo. Por esse motivo, o estudo da psicanálise é um campo aberto, sempre à disposição para uma revisão. Não se pode negar a eficácia de seus métodos. Pesquisas científicas confirmam a efetividade da psicanálise. Porém, seus métodos são diferentes, é uma ciência para incidir sobre o sujeito, ou seja, no caso a caso. Nesse sentido, a descoberta feita por Freud nunca renunciará à clínica do sintoma para dar uma mostra objetiva do psiquismo que aplaca o ensejo da ciência positivista e quantitativa.

Essa é a causa psicanalítica que devemos sustentar diante de uma sociedade cuja lógica é de racionalidade cientifica, que exclui o sujeito no qual operamos. Isso acontece porque o sujeito do inconsciente é subjetivo e a ciência privilegia o que é observável e objetivo.

Ao longo desta etapa apresentaremos a clínica contemporânea e os novos sintomas que surgem pela evidente derrocada do Simbólico, corte inclusive promovido pela ciência e pela tecnologia, que a todo tempo busca foracluir a falta ao produzir objetos.

Bons estudos!

TEMA 1 – SUJEITO CONTEMPORÂNEO

Freud inaugura a psicanálise ao desvelar a verdade do inconsciente, que se manifestava nos corpos desejantes das histéricas e nos desvios dos obsessivos contra os seus desejos. Assim, a clínica psicanalítica se funda ao colocar ao nível da fala o irredutível do gozo.

Lacan seguiu o caminho trilhado por Freud, postulando a primazia do significante, que determina o sujeito a partir dos registros do Real, Simbólico e Imaginário.

Tanto em Freud quanto nos primeiros ensinos de Lacan, havia uma orientação que norteava a constituição estrutural do sujeito, o complexo de Édipo. Trata-se de uma lei universal, que barra o sujeito em seu gozo. As defesas contra a lei resultam nas estruturas clínicas: neurose, psicose ou perversão. Cada uma dessas estruturas clínicas se organiza e forma seus sintomas. O sintoma é uma formação de compromisso que resulta de duas forças ambivalentes: o desejo e a interdição. A expressão “formação de compromisso” pode ser definida da seguinte forma:

Forma que o recalcado assume para ser admitido no consciente, retornando no sintoma, no sonho e, mais geralmente, em qualquer produção do inconsciente. As representações recalcadas são então de formadas pela defesa ao ponto de serem irreconhecíveis. Na mesma formação podem assim ser satisfeitos — num mesmo compromisso — simultaneamente o desejo inconsciente e as exigências defensivas. [...] Qualquer sintoma, enquanto produto do conflito defensivo, é formação de compromisso. (Laplanche; Pontalis, 1991. p. 198)

Atualmente, podemos evidenciar uma nova forma de inscrição simbólica, que se constitui por um novo discurso da contemporaneidade e produz novos sintomas. Para Jacques-Alain Miller (2010), os fenômenos vigentes são fruto de uma sociedade “desbussolada”, isto é, uma sociedade sem referências identificatórias, por conta de um abalo na moral que ordena a esfera social.

Nesse ponto, o autor considera que a própria invenção de Freud contribuiu para a dissolução da moral, tendo em vista que, depois da psicanálise, o desejo recalcado pela moral passou a ser um gozo de direito. Nesse sentido, podemos compreender que o abalo da moral consiste no próprio abalo do simbólico, do lugar do Outro como lei que interdita e barra o gozo do sujeito.

Outro ponto que podemos apontar como a derrocada do simbólico é a soberania da ciência na cultura, que por sua vez apaga ou foraclui Deus do mundo. Essa questão pode ser entendida como o início do processo que fez desencadear as revoluções modernas. O corte promovido pela ciência, fundamentado na suposição aristotélica de que “todo homem é racional”, promoveu um apagamento da singularidade e fundou uma lógica racional de que todos são iguais, elevando a autonomia e a emancipação do homem como dono da razão e lhe conferindo livre-arbítrio.

A declaração dos direitos humanos é um importante ganho para a civilização, mas em seu texto vemos a noção científica e positivista de sujeito: é o sujeito do direito jurídico, o sujeito livre e igual, produto da racionalidade científica, em que todo homem é livre e igual. A ascensão do homem implica o declínio de Deus, da mitologia, da interioridade e da subjetividade. A respeito desse corte promovido pela ciência, Miller (2010) desenvolve a ideia de que o objeto a surge como bússola para o sujeito, ou seja, ele é o agente que vai em direção ao sujeito desbussolado. Trata-se do objeto a, como Mais-de-gozar, pelo qual o sujeito, para dar conta do seu vazio, faz da busca pelo gozo a sua causa. Machado (2005, p. 173), descreve:

O mais-de-gozar é um objeto cultural, como nos diz Lacan no Seminário 17 [...], com o qual o sujeito tenta resolver o vazio próprio ao ser falante; ele funciona como semblante daquilo que o sujeito se supõe em falta. A diferença em relação ao que ocorria com o neurótico freudiano está no fato de que os sujeitos de hoje se sentem no direito de gozar de todos os objetos, enquanto o neurótico freudiano se sentia culpado em querer tudo.

O mais-de-gozar se articula com o conceito de mais-valia de Marx, sobre o excedente do trabalho que não é contabilizado. Assim, o mais-de-gozar é o gozo a mais, impossível de entrar na contabilização do gozo fálico, pois se trata de um gozo impossível de simbolizar.

Portanto, o sujeito contemporâneo se constitui não mais pela função paterna que barra o seu gozo, mas sim pelo seu próprio gozo não barrado, o que o induz a um único imperativo: “Goze!” Trata-se da clínica dos sujeitos deprimidos, das compulsões alimentares, das psicoses ordinárias, dos sujeitos borderline, das psicossomáticas, da relação do sujeito com o seu gozo não mortificado.

A clínica contemporânea revela um sujeito que está afastado do seu discurso, isto é, a palavra não intermedia o que ele quer, nem sobre o que teme; ela se produz desarticulada do pacto social, pelo qual o gozo entra em curto-circuito. Forbes (2010, p.15) declara: “Os novos sintomas, por surgirem do curto-circuito da palavra, são resistentes ao tratamento pela associação livre. De uma clínica do esclarecimento, vamos para a clínica da consequência”.

TEMA 2 – PSICOSE ORDINÁRIA

Vamos começar pela compreensão do termo psicose ordinária, denominação criada por Jacques Alain Miller, a partir da elaboração de três trabalhos entre os anos de 1996 e 1998. Trata-se de uma nova noção de psicose, que se distingue das psicoses extraordinária, ou seja, das psicoses que deliram e alucinam. A psicose ordinária se apresenta sem grandes fenômenos, de modo que escapava das condições clássicas que caracterizavam a clínica lacaniana da psicose.

Assim, o uso do termo surge em resposta às manifestações clínicas que escapam das classificações e produziam, no setting analítico, uma nova forma de transferência. Para esclarecer o termo, Tirone (2010, p. 2) escreve:

O termo psicose ordinária surgiu somente em 1998, em “A convenção de Antibes”. Segundo Miller, sob o grifo de psicose ordinária encontram-se os psicóticos mais modestos do que Schreber, que se tornou um grande exemplo das psicoses extraordinárias. Nos casos incluídos na nomeação de psicose ordinária estão: “a psicose compensada, a psicose suplementada, a psicose não desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia, a psicose em análise, a psicose que evoluciona, a psicose sinthomatizada”.

A psicose ordinária foi caracterizada por Miller (citado por Tirone, 2010, p. 3), que extraiu suas características clínicas do último ensino de Lacan. Entretanto, ele enfatiza: “Não se trata de uma nova categoria objetiva no campo psicanalítico, mas de uma maneira epistemológica de abordar a nosografia de acordo com a definição de sujeito que Lacan fornece após os anos 40: ‘o louco é o homem normal’”.

O que Miller propõe deve ser entendido como uma nova condição clínica, na qual, deve se ter a capacidade de passar do universal para o singular, de acordo com os modos de gozo de cada sujeito. Ou seja, a prática psicanalítica, diante do impossível de se tratar, deve se colocar de forma contingencial, para encontrar uma forma única de poder acolher o sujeito e o retirar de uma classificação padronizada.

Não podemos perder de vista os efeitos da falência da função paterna, cujas consequências na clínica se apresentam pela perda da consistência das estruturas. Tirone (2010, p. 5) declara que é nessa “crise que se justifica a noção de psicose ordinária, que acolhe as soluções encontradas pelos sujeitos psicóticos, um a um, diante das dificuldades que experimentam na construção de laços sociais estáveis”.

Nesse contexto, a autora lembra que a psicose ordinária foi também descrita por outros escritores como “psicoses na época da democracia”, onde cada uma se mostra com a possibilidade de apresentar o seu estilo pessoal e de tratamento de gozo. Portanto, o termo psicose ordinária, pode ser compreendido no sentido de evolução das modalidades dominantes do laço social.

É pura consequência do declínio do Nome-do-Pai, visivelmente exposta no discurso da cultura de nossos dias, que produzem os novos sintomas, promovendo um deslocamento no eixo das classificações clínicas. Trata-se daquilo que Lacan nomeou nos anos 70 de “pluralização do Nome-do-Pai”, ou seja, novas possibilidades de amarrar os registos Real, Simbólico e Imaginário com os nomes do pai possível.

É frente a essa nova forma de gozo que Miller (2010, p. 3) propõe o uso do termo psicose ordinária. Ele enfatiza: “inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno deste significante”. Portanto, a essa nova noção, que não se classifica pela relação do sujeito com o simbólico, ou seja, em que a metáfora paterna não barra o gozo do Outro, para que escapam das definições de estruturas da clínica lacaniana, se estabelece a noção de uma nova nosologia: psicose ordinária.

 BORDERLINE OU INCLASSIFICÁVEL?

Como vimos, a elaboração do termo psicose ordinária se deu por uma elaboração de três encontros, onde foram abordados os conceitos lacanianos. Nesses encontros, foram discutidos outros tipos de casos clínicos, que surpreendiam os analistas por não se enquadrarem nas condições clássicas da clínica lacaniana da psicose. É desde aí que a comunidade psicanalítica passou a se ocupar de uma nova abordagem, o que a princípio foi chamado de inclassificáveis.

Segundo Santos (2013), o campo de saúde mental sempre esteve em movimento para desenvolver estudos em tornos de casos de difícil diagnósticos. O surgimento da categoria borderline é fruto desse esforço de compreender e caracterizar essas condições clínicas.

Em 1953, Knight apresentou um estudo que definia o estado borderline em referência a indivíduos comprometidos psiquicamente, sem apresentar as condições de uma autêntica psicose. Porém, na Classificação Internacional de Doença, só foi possível encontrar essa classificação na nona edição (CID-9), do ano de 1976, com o termo de esquizofrenia latente ou borderline. No ano de 1980, foi inserido do DSM-, o termo transtorno de personalidade borderline.

De acordo com Santos (2013), a utilização do termo borderline refere-se, tanto no CID quanto no DSM, a um diagnostico atípico, que não satisfaz os critérios para o diagnóstico de esquizofrenia, distúrbios do humor ou qualquer outro transtorno de personalidade. Ainda que a clínica psicanalítica não tome a questão do diagnóstico como ocorre na psiquiatria, o conceito de borderline oferece uma questão que a psicanálise sempre se propôs a responder, visto que ela escapa às categorias das estruturas clássicas (neurose, psicose perversão). Nesse sentido, podemos encontrar em Freud um estudo que permanece atual entre os psicanalistas, o Caso do Homem dos Lobos (1918), em que o autor descreve o quadro clínico nesses termos:

O paciente passou um longo período em sanatórios alemães, e foi (a sua condição clínica), na época, classificada pelos mais autorizados especialistas, como um caso de ‘insanidade maníaco-depressiva’. Esse diagnóstico era certamente aplicável ao pai do paciente, cuja vida, de muitas atividades e interesses, foi perturbada por repetidos ataques de grave depressão. No filho, porém, jamais consegui durante uma observação que durou vários anos, detectar quaisquer mudanças de animo que fossem desproporcionais à situação psicológica manifesta, tanto na intensidade quanto nas circunstâncias de seu aparecimento. Formei a opinião de que este caso, como muitos outros que a psiquiatria clínica rotulou com os mais multifários e variáveis diagnósticos, deve ser considerado como uma condição que se segue a uma neurose obsessiva que acabou espontaneamente, mas deixou para trás um defeito, após a recuperação. (Freud, 1996, p. 20)

O Caso do Homem dos Lobos aponta para a dificuldade de diagnóstico, que nunca foi uma novidade, de modo que Freud não chegou a definir um diagnóstico (nem Lacan). Contudo, há uma passagem na versão em francês do seminário 10, “A angústia” (1962-63), que discute o caso do Homem dos Lobos. Em relação a essa passagem, Cristhian Dunker aponta, em seu vídeo Falando nIsso, 164, que Lacan usa o termo em inglês borderline para se referir ao Homem dos lobos. Contudo, isso nunca ganhou espaço na clínica lacaniana.

O que se supõe é que, de fato, as teorias a respeito da clínica da psicose já não são suficientes para sustentar as atuais manifestações. Nesse sentido, podemos entender que a clínica estrutural, forjada pelo Nome-do-Pai, explica os casos clínicos em que se verifica o desencadeamento da psicose pela foraclusão desse significante que sustenta o Outro pela linguagem. Mas nos casos inclassificáveis, o Nome-do-Pai já não fornece elementos, sendo preciso considerar a clínica dos anos 70 para poder escutar esses sujeitos em seus sinthomas – ou seja, em suas suplências ao Nome-do-Pai. Sobre o tema, Santos (2013, p. 165) cita Miller: “De acordo com Miller (1996), é no momento em que Lacan apresenta esta solução que se introduz uma nova questão preliminar, uma vez que o Nome-do-Pai deixa de ocupar a posição de ‘pedra angular da ordem simbólica’ e passa para a posição ‘de um suplemento, mesmo de um sintoma’”.

Assim, a noção de psicose ordinária nos orienta a entender a clínica que estaria para além do binarismo neurose-psicose, como base na função paterna, tendo em vista casos em que os fenômenos produzidos dão a impressão de se situarem entre elas.

Portanto, a clínica que nomeia o borderline é a clínica de Lacan, onde se situa a psicose ordinária, uma vez que o estreitamento entre as fronteiras clássicas de psicose e neurose se evidenciam dessa maneira.

Autores da chamada “clínica da psicanálise contemporânea” continuam discutindo essa questão sobre o borderline, chegando a apontá-la como uma nova estrutura clínica, mas ainda não há consenso para definir a existência de uma quarta estrutura clínica. Por enquanto, continuam vigentes apenas três: neurose, perversão e psicose. Porém, por outro lado, é fato que os sintomas da contemporaneidade se apresentam de forma diferente das características das três estruturas. Lembramos aqui da recomendação de Lacan: diante de uma psicose não devemos recuar. Essa questão continua em debates para que possa ser teorizada.

TEMA 4 – AUTISMO

O autismo é sem dúvida o maior tema de debates teórico-clínicos no campo da psicanálise atualmente. A questão tramita entre: o autismo é uma psicose? Ou o autismo é uma quarta estrutura? Qual é a relação do sujeito autista com a linguagem?

Não pretendemos chegar a nenhuma resposta nesta material, mas avaliar uma das noções, segundo a qual a estrutura autística é posta em relação às psicoses, considerando elementos de diagnóstico que se revelam como uma nova possibilidade de amarração entre Real, Simbólico e Imaginário.

Como sabemos, a criança, para sair do seu estado orgânico natural e se humanizar, precisa se alienar ao sentido dos significantes vindos do Outro – ou seja, efetua-se a operação da alienação. Assim, para esse mundo de linguagem, em que a criança é imersa, poderá advir ou não um suporte para o imaginário do ser que se desenvolve. Porém, o surgimento desse suporte, para mediar o imaginário, depende da condição singular de cada um ao se confrontar com a linguagem.

A operação de alienação está na origem do funcionamento psíquico, sendo fundamental reconhecê-la para que possamos distinguir outras formas das quais o sujeito pode se apropriar, não só da pulsão, mas fundamentalmente da linguagem pelo significante. No caso do autismo, fica evidente a sua principal característica: negação ao estabelecimento das relações sociais e de comunicação, considerando aqui todas as formas de comunicação e não apenas a verbal.

Outra forma de pensar esse ponto de origem da vida psíquica é que, nesses primeiros momentos de vida, o encontro entre o corpo e a linguagem engendra marcas que precisam ser decifradas pelo Outro, sendo essa a condição para estabelecer laço, e assim a criança passará a direcionar as suas demandas. Porém, nas crianças autistas, conforme especifica Santos (2013, p. 119), há uma recusa ao estabelecimento de laço, estando o Outro como agente. “Com efeito, diante da impossibilidade de ser representado por significantes o autista não efetiva a operação de alienação, visto que “o significante não se torna corpo, não produz afeto”.

O sujeito no autismo, nesse ponto se diferencia da psicose, tendo em vista que o sujeito da psicose se aliena ao discurso do Outro, de um Outro que goza desse sujeito no real, enquanto o autista é anterior a essa posição.

Nesse ponto, podemos relacionar a clínica do autismo com a topologia do nó borromeano do ultimíssimo Lacan, onde encontramos a falha do nó.

Segundo Lacan, o nó borromeano de três (Real, Simbólico e Imaginário) é imprescindível para a constituição do sujeito, de modo que o quarto elo sustenta o nó de forma borromeana, naquilo que ele chamou de sinthoma. Assim, entre a vida infantil e a vida adulta o impasse ocorre no modo como o sinthoma produz a amarração. Santos (2013, p.121) explica:

O impasse subjetivo pode ser compreendido como o ponto em que o sujeito em constituição se arrisca a enodar-se, a amarrar-se em termos sinthomáticos. Desse modo, na infância, a estrutura psíquica não é decidida, isto é, “o não decidido da criança implica a impossibilidade de fazer equivaler a estruturação de uma criança à estruturação do adulto. Assim, a incidência de nossa fala pode mudar o modo de gestão do gozo dessas crianças" [...]. Há, pois, uma não ligação definitiva entre significante e o ato.

Assim, quando não há equivalência da estruturação de uma criança à de um adulto, produz-se o tempo de constituição psíquica como um trabalho imaginário e simbólico sobre o corte real – ou seja, sobre aquilo que se torna impossível de ser apreendido, tendo como tônica a descontinuidade entre os registros: RSI. Esse processo configura uma variação na estruturação subjetiva de cada sujeito.

Na condição do autismo, Vocaro (2005, p. 15) estabelece o cruzamento entre o RSI, um contrassenso que permite realçar “os desastres que a série psicopatológica grave diferenciada da psicanálise localiza nas manifestações infantis qualificadas como autismo, psicose, fenômenos psicossomáticos e debilidade mental”. Para Vorcaro, o autismo grave seria uma recusa radical à alteridade; por consequência, o Imaginário se desataria do Real e do Simbólico, impedindo a produção de uma realidade psíquica.

Nesse sentido, com base em Lacan, Vocaro (2004) propõe, como aposta ao tratamento, a instauração de um quarto elo que cumpra a função de suplência para amarrar os três registros.

TEMA 5 – DIREÇÃO DO TRATAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE

Quando falamos de contemporaneidade, estamos falando de sujeitos da nossa época (incluímo-nos). Pois de fato somos todos caldos de uma cultura. Porém, ao nos referimos à clínica contemporânea, estamos nos referindo especificamente aos sujeitos excluídos da função paterna – dito de outro modo, sujeitos carentes de uma vida de funções simbólicas.

A particularização do gozo evidencia, na clínica, um momento híbrido, no qual encontramos sujeitos submetidos completamente à lógica fálica, outros mais ou menos alicerçadas na função paterna e outros completamente fora dessa lógica. Assim, pensar o manejo clínico requer muitas vezes abrir mão do lugar clássico do corte e da interpretação, pois o sujeito que malogrou na metáfora paterna não se divide diante da interpretação, não ecoa como um saber não sabido. A interpretação simplesmente não tem valor, não tem o efeito esperado pelo psicanalista.

De acordo com Miller (2010), o objeto a, como mais-de-gozar, surge como uma defesa. O sujeito não quer saber do seu vazio. Nesse sentido, o mais-de-gozar ocupa o lugar do discurso inconsciente, ou seja, o S1, de modo que o sujeito não está dividido pelo significante. Portanto, o sujeito fala desde o Real do seu gozo.

Qual é o lugar da psicanálise nessa clínica? O discurso do analista, assim como foi assinalado por Lacan, como causa de desejo, efetua o mesmo corte?

Situemos que o discurso do analista, como causa de desejo, extrai da associação livre, isto é, da rede simbólica, os significantes q que o sujeito estava intimamente ligado, para produzir uma retificação psíquica. Dito de outro modo, através do corte do analista, que faz furo no discurso do sujeito, o inconsciente é revelado como discurso do Outro, e assim o sujeito pode barrar esse gozo e se desvincular dos ideais paternos recalcados.

Na clínica contemporânea, os sujeitos estão desbussolados, ou seja, sem um Outro que produza ideais a partir de sua falta. Miller (2004) define: “estão dispersos na civilização e que só na psicanálise, na psicanálise pura, esses elementos se ordenam em discurso”. Portanto, o analista deve se dispor a uma outra via para conseguir enlaçar esse sujeito.

A psicanálise pura, que se opera pela palavra no setting analítico, deve oferecer ao sujeito contemporâneo a possibilidade de amarra subjetiva, isto é, o sinthoma. Machado (2005, p. 195) estabelece:

O sinthoma como modo de amarração subjetiva é o que a psicanálise tem a oferecer, buscando para cada um uma fixação, uma ordenação. Parece-nos que essa operação responde ao desbussolamento do sujeito, pois ao dar lugar aos elementos dispersos, dá um norte, um norte singular, porém um norte. Essa argumentação está na filiação do sinthoma como elemento articulador, enodando os registros real, simbólico e imaginário. Articulando os elementos dispersos, o sinthoma daria corpo ao sujeito desbussolado ao conectá-lo com seu próprio gozo.

Nesse sentido, a autora indicará, seguindo a leitura lacaniana, que a posição do analista é a do dito. Isso significa que o analista se coloca como o endereçado dos enunciados, de forma que não há interpretação daquilo que se diz, apenas o dito. Assim, o dito, colocado no lugar do S1, busca aproximar o sujeito do que ele diz.

É um caminhar para que o sujeito seja afetado pelo seu dizer, ao passo que se produza Um Gozo, um sentido ao qual o sujeito pode se articular, um sinthoma que o nomeie.

NA PRÁTICA

Nesta etapa, trago um caso da minha clínica: o caso Patrick. Patrick é um jovem que chegou à análise por intermédio de sua irmã, que estava preocupada com seu estado depressivo. Na primeira entrevista, veio acompanhado da mãe, uma mulher simples e trabalhadora.

Patrick foi criado pela sua mãe e irmã mais velha, e nunca conheceu seu pai. Relata que sua mãe engravidou de um homem casado que nunca quis nada com ela. Porém, diz que nunca sentiu vontade de conhecê-lo, pois quando era pequeno, sem saber como, começou a chamar o seu tio de pai.

A queixa de Patrick é sobre uma garota. Ele se diz completamente apaixonado, que ela é o amor de sua vida, a garota dos seus sonhos. Porém, eles só se falam pela internet. Ele a conheceu pelas redes sociais e todas as vezes que marcam de se encontrar, algo acontece e ela não pode ir.

Diz que tem muito medo de que aconteça o mesmo que aconteceu com a sua primeira namorada. Relata que namorou uma menina da escola, muito linda, mas que queria ficar com as amigas, ignorava as suas ligações e parecia que não estava tão interessada, o que o deixava arrasado. Eles terminaram depois de muita cobrança da parte dele. Depois disso, ele tem muito medo que a mesma situação se repita. Porém, segundo Patrick, com essa nova garota é diferente, ele sente uma conexão muito forte, uma alma gêmea.

Patrick inicia o tratamento e o material de suas sessões é, em geral, as conversas que ele mantém com a garota. Relata que ficam horas conversando, que eles falam sobre tudo, conta que faz planos para o futuro com ela.

E quando pergunto se o encontro presencial vai acontecer, Patrick diz que sim, mas acha que ela ainda não superou um antigo namorado, e por isso acaba não indo quando marcam algo.

Começo então a questionar por que tanto interesse por alguém que ele ainda não conheceu presencialmente, se por acaso ele não tem medo de que ela não seja quem ele pensa que é. Afinal, em conversas a distância muita coisa pode ser dita. Tal intervenção, que parece simples, vai criando uma barra, em um gozo sem medida.

Nas sessões seguintes, Patrick conta que conheceu outra menina, diz que faz uma semana que não fala com a garota de antes, mas que essa menina o tem interessado muito, pois parece ser muito sincera. Essa menina é de sua escola, porém é a primeira vez que eles conversaram pela internet, e assim marcaram de se falar na escola.

Entre uma sessão e outra, Patrick tem um novo amor, uma nova alma gêmea. Os dois passam a se falar diariamente por telefone. Ele diz que ambos gostam das mesmas coisas. As sessões passam a ser sobre essa nova menina, que, diferente da outra, lhe dá muita força. Nas sessões subsequentes, Patrick amou muitas outras moças, sem saber o que queria nelas, pois apenas o seu gozo era vivenciado nas relações.

Patrick não fazia associações. A busca por um relacionamento não diz respeito a um vazio, mas a uma forma de gozar, um prazer no aqui e agora. As intervenções são realizadas na tentativa de produzir um S1, ou seja, um significante para que os outros significantes possam ser encadeados.

Patrick queria gozar de um relacionamento como Hardin, personagem do filme After. Contudo, em análise, pouco a pouco o trabalho seguia na direção de produzir um sentido para o seu gozo, com o qual Patrick pudesse se identificar de fato, ou dele se nomear.

Outro exemplo sobre esses sujeitos chamados desbussolados na clínica contemporânea refere-se às queixas de não se acharem em nenhuma profissão, de ficarem esperando que algo aconteça e que os inclua.

Dissemos que o psicanalista deve oferecer ao sujeito contemporâneo a possibilidade de amarra subjetiva, isto é, de formação do sinthoma como nomeação para o sujeito. Podemos pensar nas oficinas de arte tal como fez a psiquiatra e psicanalista Nise da Silveira com pacientes internados em manicômio – por meio de técnicas projetivas em oficinas de artes que envolviam pintura, escultura e modelagem.

FINALIZANDO

  • Tratamos sobre os sujeitos desbussolados, termo que representa a falta de referência simbólica, em uma sociedade sem referências identificatórias, que não sabe para onde está indo, por conta de um abalo na moral que ordena a esfera social. Nesse sentido, o objeto a surge como bússola para o sujeito, ou seja, ele é o agente que vai em direção ao sujeito desbussolado. Trata-se do objeto a, como mais-de-gozar, prazer imediato, hedonista, busca a felicidade no hoje. O sujeito, para dar conta do seu vazio, faz da busca pelo gozo a sua causa.
  • Estudamos a constituição do termo psicose ordinária, que surge em resposta às manifestações clínicas que escapam às classificações e produzem, no setting analítico, uma nova forma de transferência. “Não se trata de uma nova categoria objetiva no campo psicanalítico, mas de uma maneira epistemológica de abordar a nosografia de acordo com a definição de sujeito que Lacan fornece após os anos 40: ‘o louco é o homem normal’” (Miller, citado por Tirone, 2010).
  • Vimos que a clínica psicanalítica não toma a questão do diagnóstico como ocorre na psiquiatria. Porém, tanto a psicanálise quanto a psiquiatria estão às voltas com o entendimento sobre o conceito de borderline. A clínica em que se nomeia o borderline é a clínica de Lacan, onde situamos a psicose ordinária, uma vez que o estreitamento entre as fronteiras clássicas de psicose e neurose se evidenciam. Vê-se aí justificado o esforço atual para continuar em busca dessa resposta.
  • Estudamos o autismo como suposta quarta estrutura que se diferencia da psicose. O autista é anterior à psicose. O autismo seria uma recusa radical à alteridade. No autismo, a hipótese é que o Imaginário se desata do Real e do Simbólico, impedindo a produção de uma realidade psíquica.
  • Para a clínica contemporânea, o sujeito está desbussolado, ou seja, sem um Outro que produza ideais a partir de sua falta. O analista deve se dispor a uma outra via para conseguir enlaçar esse sujeito. Ele deve oferecer ao sujeito contemporâneo a possibilidade de amarra subjetiva, isto é, de formação do sinthoma, uma nomeação para o sujeito.

REFERÊNCIAS

FORBES, J. O homem desbussolado. Psique, n. 53, maio 2010.

FREUD, S. História de uma neurose infantil (O Homem dos Lobos). In: Obras Completas Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 17.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. L. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

MACHADO, O. M. R. A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo. 2005. Disponível em: <http://www.isepol.com/asephallus/numero_01/artigo_08port_edicao01.htm>. Acesso em: 29 set. 2023.

MACHADO, O. M. R. A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGTP, 2005.

MILLER, J. A. Efeito do retornos à psicose ordinária. Opção Lacaniana Online, ano I, n. 3, nov. 2010.

SANTOS, H. L. Psicose ordinária: um estudo sobre o desenvolvimento de uma noção. Revista ECOS, v. 3, n. 1, maio 2013.

TIRONE, A. C. A psicose ordinária e os inclassificáveis das categorias lacanianas. Opção Lacaniana Online, ano I, n. I, mar. 2010.

VORCARO, A. M. R. A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

_____. Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

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