quarta-feira, 19 de julho de 2023

CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM PSICANÁLISE (un)

 CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM PSICANÁLISE

AULA 1

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Prof.ª Juliana Santos

CONVERSA INICIAL

Durante essa caminhada, iremos apresentar a base dos conceitos psicanalíticos que norteará todo o estudo de psicanálise, pois trata-se dos conceitos que Freud nomeou de sua metapsicologia, isto é, os conceitos e teorias que caracterizam a psicanálise como um saber.

Aqui já é importante fazer um esclarecimento: o que é fundamental para Freud e para Lacan!

Para Freud, os conceitos fundamentais são aqueles que embasaram o que ele chamou de metapsicologia. E metapsicologia é o nome que Freud deu para se referir ao conjunto de suas teorias sobre a organização e o funcionamento psíquico.

Créditos: HypeStudio/Shutterstock.

Freud desenvolveu a teoria psicanalítica, à qual deu o nome de metapsicologia, entre os anos de 1900 e 1939. É sobre esse período histórico que esta nossa caminhada vai tratar em um primeiro momento.

Agora vamos ao segundo momento: anos depois, Jacques Lacan também deixou sua marca na psicanálise ao destacar o que ele chamou de Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. São eles:

  • Inconsciente;
  • Repetição;
  • Transferência; e
  • Pulsão.

Estes são os conceitos da psicanálise que são fundamentais para Lacan. Um dos livros da coleção Os Seminários tem o nome: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. É o volume 11, publicado originalmente em 1964.

Então, resumindo: quando falamos em conceitos fundamentais EM psicanálise, estamos nos referindo à metapsicologia freudiana. Quando falamos de conceitos fundamentais DA psicanálise, é uma referência ao Seminário 11, de Lacan.

TEMA 1 – O QUE É A METAPSICOLOGIA FREUDIANA?

Nas obras de Freud, podemos considerar alguns textos como sendo parte essencial do movimento metapsicológico. Destacamos aqui os mais clássicos:

  • O Projeto para uma psicologia científica (1895), mais conhecido como “O Projeto”, é um texto pré-psicanalítico no qual Freud, ainda impregnado de um discurso médico e organicista, busca descrever o funcionamento do aparelho psíquico por meio de transmissão neuronal. Esse texto mostra onde tudo começou, quais eram as primeiras hipóteses de Freud sobre o psiquismo.
  • A Interpretação de Sonho (1900), no qual Freud se distancia da visão organicista anterior e passa a apresentar o funcionamento do aparelho psíquico por meio de três instâncias: inconsciente, consciente e pré-consciente, nomeado de a primeira tópica do aparelho psíquico.
  • Introdução ao narcisismo: texto que compreende a constituição do eu e que produz a unidade corporal do sujeito, que antes se encontrava despedaçada no autoerotismo.
  • Artigos sobre a metapsicologia (1915-1916). Nesta publicação, encontramos alguns textos que são fundamentais para a construção teórica da psicanálise:
    • A pulsão e suas vicissitudes (1915): uma das principais construções teóricas, considerada a mitologia freudiana – a teoria das pulsões.
    • O recalque (1915): texto que demarca a divisão do psiquismo através do mecanismo do recalque, como sendo esse um dos destinos da pulsão.
    • O inconsciente (1915): Freud constata que o inconsciente é uma instância que está para além do conteúdo recalcado.
  • Mais além do princípio de prazer (1920). Este é o texto que inaugura uma nova fase na metapsicologia freudiana, pois fica claro o avanço na compreensão de Freud sobre o psiquismo humano. Podemos dizer que é este texto que divide epistemologicamente a teoria psicanalítica, como um “antes” e um “depois” dele. Essa nova fase se inicia com a publicação do texto, no qual é introduzido o conceito de pulsão de morte, sendo este, mais um modo de regulação dos processos psíquicos e dá uma nova dimensão clínica, através da compulsão à repetição. Então, no texto Mais além do princípio do prazer (1920), vamos destacar:
    • Pulsão de morte
    • Compulsão à repetição

A partir dessa nova elaboração, Freud constrói a segunda tópica do aparelho psíquico, no texto metapsicológico O eu e o isso (1923).

  • O eu e o isso (1923): demonstra o ponto de vista estrutural: Eu, Isso e Supereu, como sendo instâncias estruturais que interagem permanentemente e se influenciam.
  • O problema econômico do masoquismo (1924): apresenta o modo como a pulsão de morte opera e modifica a relação com o princípio de prazer.

Portanto, os conceitos inconsciente, pulsão, repetição e pulsão de morte são fundamentais e que estão na base de todos os desdobramentos teóricos da psicanálise, pelo qual foi nomeado por Freud de sua metapsicologia. Contudo, mesmo se tratando de uma teoria, não se trata de uma descrição clínica, mas de uma recusa a transformar a psicanálise em uma prática gentil do afeto. Nesse sentido, Garcia-Roza (2008, p.13) declara que: “Opor teoria e clínica, de modo que uma exclua a outra, corresponde a negar o próprio projeto freudiano. Para aqueles que insistem em não acreditar em bruxas, Freud adverte que elas existem. Pelo menos a bruxa metapsicologia.”.

De fato, todos os textos de Freud são importantes, mas estes listados acima são os estruturais, ou seja, aqueles que sustentam toda a construção teórica, e por isso são considerados fundamentais.

Em seguida, abordaremos cada um deles, e depois também serão abordados os quatro conceitos que Lacan destacou como fundamentais no seminário 11, pois, por meio de suas incisões na teoria freudiana, a clínica alcançou o que sempre esteve na mira de Freud, mas ele não chegou a alcançar.  

TEMA 2 – OS PRINCÍPIOS REGULATÓRIOS DO PSIQUISMO

2.1 PRAZER X DESPRAZER

Antes de nos aprofundarmos nos principais textos da metapsicologia freudiana, vamos ampliar nossa compreensão sobre alguns princípios que regulam o funcionamento psíquico.

O principal regulador psíquico foi nomeado por Freud de princípio de prazer, ele corresponde a uma tendência psíquica que visa evitar o desprazer, pois, a sensação de prazer e desprazer marcam a vida psíquica desde momento muito primitivo da vida.

Assim, o princípio do prazer exerce uma força sobre o funcionamento do psiquismo e estará no processo de desenvolvimento e organização, através dos traços mnêmicos, ou seja, as vivências do sujeito deixam registro que estará em compromisso com o princípio de prazer.

Portanto, o princípio de prazer refere-se a um funcionamento que visa uma economia de tensão, ou seja, ele trabalha em prol do controle da quantidade de excitação, pelo qual a sensação prazer-desprazer está relacionada a essa quantidade, haja vista que o objetivo é a homeostase psíquica:

Prazer = descarga de excitação

Desprazer = aumento de excitação (tensão)

Dessa forma, o funcionamento do aparelho psíquico está a serviço do princípio de prazer, que busca evitar o desprazer. Contudo, ao longo da vida, o sujeito se dá conta de que o prazer nem sempre pode ser obtido, haja vista que a busca imediata pelo prazer pode gerar um desprazer, ou seja, ter como consequência uma punição. Portanto, o sujeito passa a usar a sua razão para avaliar a situação sendo, por vezes, levado a renunciar um prazer para se manter afastado de um desprazer. A esse funcionamento, Freud nomeou de princípio de realidade.

Assim, o princípio do prazer estaria intimamente ligado aos processos primários, cujos estímulos são internos e visam sempre o prazer, pela descarga de excitação. Por outro lado, o princípio da realidade está relacionado ao processo secundário, que permite a inibição dessa descarga, por conta de estímulos externos.

No entanto, vale lembrar que, na passagem do princípio de prazer para o princípio de realidade, com a instauração de um julgamento, este último não anularia o primeiro. Em última análise, ainda que o princípio de realidade garanta a obtenção de satisfação no real, no psiquismo o princípio de prazer continua reinando no campo da fantasia.

2.2 PRINCÍPIO DE PRAZER – PRINCÍPIO DE CONSTÂNCIA

O ponto de vista econômico do psiquismo, ou seja, a busca por manter o nível de excitação baixa é regulada pelo princípio de constância. Esse princípio está intimamente ligado ao princípio de prazer, já que o prazer é compreendido como uma descarga de tensão, e o princípio de constância busca manter constante dentro de si a soma de excitação. Laplanche e Pontalis (2001, p. 355) descrevem o princípio de constância da seguinte forma:

Princípio enunciado por Freud, segundo qual o aparelho psíquico tende a manter a nível tão baixo ou, pelo menos, tão constante quanto possível a quantidade de excitação que contém. A constância é obtida, por um lado, pela descarga da energia já presente e, por outro, pela evitação do que poderia aumentar a quantidade de excitação e pela defesa contra esse aumento.

Portanto, o princípio de constância aciona o mecanismo de defesa e descarrega os aumentos de tensão de origem interna e evita excitações externas.

2.3 O PRINCÍPIO DE INÉRCIA

O princípio de inércia foi apresentado por Freud no Projeto (1895). Ele não reaparecerá nos textos posteriores, contudo o tomaremos para inserir a origem dos pensamentos metapsicológicos de Freud em suas primeiras elaborações.

Ele descreve o princípio de inércia por funcionamento de arco reflexo, no qual a quantidade de excitação recebida pelo neurônio sensitivo deve ser interiormente descarregada na extremidade motora. A tendência essencial deste princípio é se livrar da quantidade de energia externa (Q). Contudo, Freud justifica que esse princípio não pode atuar sozinho, pois, se toda energia fosse descarregada, não sobraria nada para poder exercer ações específicas destinadas a satisfazer as exigências decorrentes dos estímulos endógenos (que se formam no interior, como a fome). Nesse sentido, o aparelho psíquico é obrigado a reservar uma quantidade de energia, se opondo ao princípio de inércia. Esse funcionamento corresponde a um processo secundário, que Freud nomeia de lei de constância.

Desse modo, podemos verificar uma semelhança entre o princípio de inércia e o princípio de prazer, como também uma equivalência da lei de constância com o princípio de constância, que, a partir do texto da Interpretação do sonho (1900), vão se tornando conceitos metapsicológicos, os quais fundam a base da teoria psicanalítica.

TEMA 3 – A EXPERIÊNCIA DE DESAMPARO E SATISFAÇÃO

 Outro ponto que não podemos deixar de abordar para compreender os processos de funcionamento psíquico é o sentimento de desamparo. Não é difícil chegarmos a um consenso de que o ser humano é o mais vulnerável dentre todas as espécies, pois, desde seu nascimento até o decorrer da manutenção de sua vida, ele é marcado por sua precariedade constitucional que estará sempre presente e o levará a retornar ao seu estado de desamparo.  

No Projeto (1895), Freud nos confronta com essa experiência primária do desamparo e da satisfação, que, posteriormente, estará em vários conceitos teóricos da psicanálise. Trata-se da confabulação sobre a vivência humana em seu início de vida, em que a criança recém-nascida, ao ter uma grande soma de excitação endógena (fome) em seu organismo, terá necessidades de descarregar e ter suas necessidades satisfeitas. Contudo, devido à sua imaturidade, ela não tem possibilidade de realizar sozinha tal função, necessitando, assim, 100% do outro para se manter vivo. Freud (1895, p. 370) explica assim:

Nesse caso, o estímulo só é passível de ser abolido por meio de uma intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Q no interior do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo externo (fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode ser promovida de determinadas maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais.

Portanto, a imaturidade humana é, em primeiro lugar, fonte de valores morais, pelo qual Freud distingue nesse texto uma forma do estado desamparo, no qual o bebê recém-nascido é incapaz de dominar as excitações internas e externas, de modo que este necessita da intervenção de um outro que possa o proteger contra as forças externas e internas, razão pela qual este último se tornará o seu primeiro objeto de amor.

Essa intervenção específica do outro é a função que Lacan nomeara em seu ensino de Outro primordial, lugar para quem executa a função materna, não necessariamente a mãe. Essa ajuda externa produz uma marca de satisfação psíquica, que inaugura o funcionamento do aparelho psíquico, pois, uma vez que o pequeno e imaturo indivíduo volta a ter uma alta carga de estímulos, produzindo desprazer, suas memórias serão ativadas, e novamente ele buscará reviver a experiência de satisfação, colocando em função os princípios que regem o psiquismo.

Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as consequências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo. (Freud, 1895, p. 370)

Assim, na tentativa de reproduzir a primeira experiência de satisfação, ele alucinará o objeto da satisfação. Isso não resolverá o seu problema, então o recém-nascido buscará pela motricidade (exemplo: agitação das perninhas) o alivio da tensão, mas não ocorrerá, pois, para satisfazer os estímulos endógenos de urgências vitais, as descargas motoras não são eficientes. Mas, conforme é expresso por Garcia-Roza (2008), em se tratando de um bebê humano, logo esses movimentos serão lidos como uma demanda ao Outro.

Se um recém-nascido premido pela fome chora e agita os braços e as pernas, essas respostas motoras não são eficazes para a eliminação do estado de estimulação na fonte corporal. Essa conduta, considerada em si mesma, é ineficaz para a obtenção do alimento; no entanto, em se tratando do recém-nascido humano, ela se insere num outro registro, o da comunicação por sinais, e aparece como demanda, demanda ao Outro, deixando de ser um mero behavior ineficaz para se constituir numa forma de introdução do sujeito na ordem simbólica. (Garcia-Roza 2008, p. 130)

Assim, o choro será ouvido como uma demanda ao Outro e, na medida que ela é atendida, passará a se circunscrever no registro da linguagem. Nesse sentido, ao demandar o Outro, o organismo vivo, já não visa apenas às emergências vitais, mas à experiência de satisfação, ou seja, uma marca pulsional que diferencia a espécie humana de todas as outras.

TEMA 4 – A REALIDADE PSÍQUICA  

A noção de realidade foi abordada por Freud desde o Projeto, contudo, nesse momento o autor se interessou em demonstrar a realidade como uma conduta do pensamento: “Quando uma vez concluído o ato de pensamento, a indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um juízo de realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda essa atividade”. (Freud, 1996, p. 253).

Contudo, essa realidade abordada no Projeto não é a realidade psíquica relacionada ao inconsciente, mas trata-se daquilo que se apresenta como objeto da percepção, que é correlata à consciência pela experiência imediata, cujos signos vão colocar em função o princípio de realidade.

Cinco anos depois do Projeto, a noção de realidade ganha um novo capítulo na teoria freudiana. Ela é retomada no capítulo VII da Interpretação do sonho (1900) e, agora sim, trata-se da realidade que realmente importa para a psicanálise: “O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica” (p. 181)

A realidade psíquica é a realidade que verdadeiramente importa à psicanálise, ela se distingue da realidade material, na medida em que é dominada pelo império da fantasia e do desejo.

Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos à sua expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de lembrar-nos, sem dúvida, que também a realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material. (Freud, 1900, p. 644)

A concepção da realidade psíquica é resultado de uma escuta clínica, pois, antes dela, Freud foi levado a elaborar uma teoria da sedução, uma vez que no relato de suas pacientes, havia sempre uma cena de sedução infantil responsável pelo surgimento da doença, mas, para que tal teoria pudesse se sustentar, todos os pais de meninas histéricas deveriam ser perversos e seduziam as suas filhas. Assim, diante desse impasse, Freud abandona a teoria da sedução e passa a apoiar a sua ideia de realidade psíquica pela constituição de uma fantasia alicerçada no desejo inconsciente.

Portanto, ao afirmar uma realidade psíquica, Freud demonstra que o sujeito se relaciona com a realidade da mesma forma como ele se posiciona no laço social, isto é, a realidade refere-se à forma de existência do sujeito.

Por exemplo: no início da minha prática clínica, atendi uma moça que tinha uma enorme repulsa pelo pai. Ela contava que o olhar do seu pai era maldoso e que não tem certeza se quando criança ele tentou abusar dela, mas a sensação era que sim, mesmo que não tivesse clareza sobre o ocorrido. Tentei questioná-la perguntando se aquilo não podia ser coisas da sua cabeça, pois queria saber se de fato ela acreditava que o pai dela poderia ser esse tipo de pessoa. Esse tipo de comprovação de realidade não tem a menor importância para a psicanálise, pois o que de fato importa é o que o paciente diz, e se ela dizia que acreditava que poderia ter sido abusada pelo pai, é isso que deve ser acolhido com verdade, pois o sofrimento vivido por essa paciente é real, independe de o pai ter ou não cometido o ato. (Santos, [S.d.])

Portanto, o que Freud nos ensina é que toda apreensão de realidade está submetida ao desejo e, dessa forma, a realidade é alucinada (o que não a torna menos real). Nesse sentido, os psicanalistas não têm compromisso nenhum em comprovar se o que lhe é relatado é verdadeiro, pois a realidade psíquica, a que nos importa, é onde encontramos o sujeito sobre o qual a psicanálise opera, o sujeito efeito da linguagem.  

TEMA 5 – O PROJETO PARA UMA PSICOLOGIA CIENTÍFICA

Agora sim, vamos voltar a falar sobre o Projeto, o começo de tudo. É curioso pensar que por 42 anos, durante os quais Freud se dedicou à psicanálise, o Projeto ficou esquecido por ele, e só voltou a ser lembrado quando foi resgatado do poder nazista pela sua ex-paciente Marie Bonaparte (quem tiver interesse nessa história, no livro Freud e o inconsciente, Garcia-Roza traz comentários). Mas, em 1895, como Freud compreendia a organização do psiquismo humano?  

A ideia de um tratamento que fosse para além do corpo fisiológico passou a fazer parte dos pensamentos de Freud desde seu encontro com as histéricas. E foi com base na sua experiência clínica que ele passou a formular o modo como o psiquismo se estrutura e reage aos acontecimentos. Assim, através do estudo do Projeto, podemos observar como Freud formula um tratamento que operaria desde a alma.

Nossa tentativa é extrair do Projeto, de forma muito simplificada, o primeiro modelo de funcionamento psíquico e, para isso, usaremos a referência apresentada por Garcia-Roza (2008, p. 118), na qual declara que Freud concebe o psiquismo como um “aparelho” capaz de transmitir e de transformar uma energia determinada. Tal aparelho se constitui pelas funções neuronais:  jy e w, e é estimulado por duas fontes: 1) o mundo externo (exógena); 2) o interior do próprio corpo (endógenas). Veja no gráfico a seguir:

Créditos: Lightspring/Shutterstock.

A explicação é a seguinte – formam-se dois sistemas de neurônios:

  1. O primeiro sistema de neurônios – fi (j) – formado de neurônios permeáveis, que não oferecem resistência ao escoamento de Q e destinados à percepção;
  2. O segundo sistema de neurônios – psi (y) – formado de neurônios impermeáveis, dotados de resistência, retentivos de Q e portadores de memória.

Os neurônios j são alimentados diretamente de fonte externa, enquanto os neurônios y são estimulados por fonte endógena. Garcia-Roza (2008) complementa essa explicação afirmando que, por conta disso, a carga de Q nos neurônios j será muito maior do que a carga nos neurônios y, de modo que, em j não possibilitará a criação de barreiras de contato, pois estas seriam imediatamente destruídas pelo excesso de Q. Já nos neurônios y, por serem menos carregados, podem formar barreiras mais ou menos fortes, constituindo, dessa forma, uma memória.

O princípio que gerencia esse sistema é o princípio de Inércia, que, como apresentamos anteriormente, tende à descarga total de Q, mas é impedido por uma barreira de contato, pois o próprio sistema precisa manter uma quantidade de energia para executar atividades específicas. Assim, de forma secundária atua o princípio de constância, cuja função é manter o nível de energia, constantemente, o mais baixo possível.

A função primordial dos dois sistemas neurônicos – j e y – é manter afastadas as grandes Qs externas através da descarga. Essa função de descarga está ligada à tendência básica do sistema nervoso, que é a de evitar a dor ou desprazer resultante de um acúmulo excessivo de Q no sistema formado pelos neurônios y. Isso faz com que Freud praticamente identifique, no Projeto, o princípio de prazer com o princípio de inércia.

A função revelada por Freud, de um princípio que, ao invés de buscar prazer, funciona na condição especificada de evitar a dor é decorrente do fato de que no sistema psíquico não há barreira de contatos que seja capaz de deter um estímulo doloroso, de modo que a própria lembrança desse estímulo já é suficiente para provocar sofrimento. Assim, serão os resíduos das experiências de prazer e desprazer que vão constituir os afetos e causar o desejo.

Projeto tem para nós, estudantes de psicanálise, um valor histórico e nostálgico, pois ele nos remete a um jovem Freud, que nos torna íntimos por um processo de identificação a essa imagem – não empoderada como a que veremos mais adiante – mas de um ser mortal como nós, buscando a compreensão de um saber ainda encoberto.

Em outro momento, veremos os desdobramentos no Projeto, no capítulo VII da interpretação do sonho, mas, desde já, podemos avaliar que a psicanálise preencheu uma lacuna, pois os elementos que estavam disponíveis nesta época, para explicar o funcionamento mental, eram os da neurologia ou os da religião. Uma frase de Freud representa esse momento: “É preciso proteger a psicanálise dos médicos e dos sacerdotes”. Isso porque a psicanálise se inseriu entre esses dois extremos, e Freud queria que fosse assim mesmo, pois, se naquela época a psicanálise fosse levada às universidades, seria dominada pelo discurso organicista dos neurologistas, e, se fosse dominada pelas religiões, a separação mente e corpo continuaria. Freud sabia que mente e corpo eram indissociáveis, por isso recomendava que a psicanálise não fosse “encaixada” nos saberes dominantes da época. Fez dela um novo saber.

NA PRÁTICA

As sensações e emoções produzem memórias no corpo e são, portanto, experiências psicossomáticas. Quando estudamos que a psicanálise se produziu a partir de um discurso médico que não dava conta de explicar todos os sintomas, isso quer dizer que nem tudo o que nos adoece ou provoca sofrimento pode ser diagnosticado com imagens e exames clínicos.       

Vamos ver um exemplo em que vivências infantis muito arcaicas podem deixar marcas no psiquismo, de forma a definir uma posição do sujeito, ou seja, um modo de ser que pode ser caracterizado como um problema para a pessoa.  

O exemplo: uma mãe teve duas gestações. Na primeira gestação, seu parto foi humanizado – seu filho, ao nascer, veio prontamente para o seu colo e permaneceu com ela todo o tempo. A criança cresceu de forma mais independente, gostava de dormir em seu quarto, sozinha, pois parecia se sentir segura com a presença (internalizada) da mãe, mesmo esta não estando fisicamente perto. Na segunda gestação, seu filho não teve o mesmo tratamento. Logo ao nascer, foi levado para o berçário, onde ficou chorando por uma hora, até ser levado para a mãe. A criança cresceu com uma dependência muito maior da presença da mãe, pois esse encontro com a mãe representou uma experiência que marcou uma falta anterior. Ou seja, a criança teve a experiência de desprazer e desamparo, mas quando foi para o colo da mãe, marcou um lugar que ela não queria perder, frente à sua primeira experiência de desamparo. Assim, podemos demarcar que o psiquismo registra experiências, desde o primeiro momento de vida, que deixarão marcas psíquicas para sempre na vida do sujeito. 

Era algo assim que Freud visualizava quando se sentia insatisfeito com os elementos e recursos objetivos da ciência neurológica. Ele se dedicou a desvendar esse fenômeno, que está na fronteira do somático com o psíquico, que deixa marcas, que produz sintomas e que está na raiz do que somos hoje, mas que não pode ser diagnosticado por exames de laboratório nem de imagem, e sim pelo discurso, pela fala.  

FINALIZANDO

Nesta etapa, foram apresentados pequenos recortes do Projeto e alguns conceitos que nortearam a psicanálise.  

Quando falamos em teoria psicanalítica freudiana, nos referimos à metapsicologia, pois foi esse o nome que Freud deu para caracterizar o conjunto de sua obra. Destacamos os textos essenciais, que são os que dão eixo para o que hoje conhecemos como o método psicanalítico.

Para a compreensão da psicanálise, é fundamental conhecermos a sua teoria e a delimitação conceitual do que é: inconsciente, recalque/repressão, pulsão (de vida e de morte), compulsão à repetição, e isso não significa que a teoria supere a prática clínica, mas elas devem estar alinhadas e sustentando o fazer psicanálise.  

Dentre os psicanalistas pós-freudianos, destaca-se Jacques Lacan. Depois de ler toda a metapsicologia freudiana, Lacan apresentou quais, para ele, são os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão.






REFERÊNCIAS

GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.


_____. Matapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. v. 1.

FREUD, S. O Projeto para uma psicologia cientifica. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1.







palavras-chave: psicanalise, Freud, psíquico, fantasia, desejo, inconsciente,

segunda-feira, 17 de julho de 2023

TEORIA PSICOSSEXUAL DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL - aula 6

  

TEORIA PSICOSSEXUAL DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

AULA 6

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Profª Raquel Berg

Bacharelado em psicanálise  - uninter

resumo material abordado unidade 6 

CONVERSA INICIAL

Olá! Seja bem-vindo a mais uma etapa da nossa jornada do conhecimento sobre teoria psicossexual do desenvolvimento infantil. Nesta aula, falaremos a respeito de ego e id e como eles foram fundamentais para compreendermos como se dá a constituição psíquica e sexual. Nesse sentido, trataremos um pouco acerca das diferenças da primeira e da segunda tópicas dentro do contexto do ego e do id, além dos conceitos de id, ego e superego.

Na sequência de nossa reflexão, faremos uma apresentação de como ocorre o desenvolvimento humano do ponto de vista biológico, os três organizadores psíquicos de Spitz dentro desse contexto do desenvolvimento no primeiro ano de vida. Por fim, abordaremos brevemente os conceitos kleinianos e lacanianos sobre a formação psicossexual infantil, como se conectam com a teoria freudiana e como estendem a visão a respeito do desenvolvimento das crianças e o papel da psicanálise na análise do sintoma infantil.

TEMA 1 – O EGO

O texto do ego e id foi um dos grandes marcos da teoria freudiana. Até então, o conceito de inconsciente vinha como um pilar da metapsicologia psicanalítica juntamente com os de subconsciente e consciente, e essa tríade compunha a constituição do aparelho psíquico segundo a primeira tópica freudiana. O inconsciente era descrito como a forma pela qual determinadas informações eram apreendidas e ficavam “escondidas” na mente, só podendo ser resgatadas por hipnose ou no relato dos sonhos. A necessidade de se escrever esse texto e, posteriormente, lançar a segunda tópica, se deu pelo fato de que no ego também há um inconsciente, do mesmo modo como no inconsciente residem uma parte do superego e do ego, assim como o id.

Posto que essa segunda tríade compartilha de mais de um lugar, Freud decide criar o segundo modelo e mantém, de alguma maneira, ainda a existência do primeiro. Vale retomar que o primeiro foi constituído a partir do texto de Freud sobre o “Projeto para uma Psicologia Científica” de 1895; nele, Freud (1977, v. XIX) “importa” o conhecimento que já possui em neuroanatomia, as descobertas de Wundt, Golgi, Ramon e Cajal, e com isso cria sua hipótese de como os pensamentos e as emoções se constituem para além da questão motora, do “arco reflexo”. Nesse texto de 1895, Freud (1977, v. XIX) também projeta como poderia funcionar o recebimento de novas informações e o modo pelo qual estas se inserem no conhecimento já adquirido, e como, a partir disso, se formam os sintomas “a partir de uma força recalcada que se esforça em abrir caminho até a atividade, mas mantida sob controle por uma força repressora e, estruturalmente, um ‘inconsciente’ a que se opõe um ‘ego’” (Freud, 1977, v. XIX, p. 17).

No entanto, se analisarmos mais a fundo esse trecho do texto “Interpretação dos Sonhos” de 1900 (1977, v. XIX), observamos que o autor tenta seguir com o primeiro modelo, mas algumas inconsistências começam a surgir, como a contraposição entre inconsciente e ego, que até então não eram instâncias do mesmo conjunto.

Com isso, o termo inconsciente passa a ter dois sentidos: um mais descritivo, que confere uma qualidade específica a um estado mental; e outro, dinâmico, que atribui uma função a esse estado mental. Depois, essas qualidades atribuídas a conceitos que existiram desde o início da psicanálise e permaneceram até os últimos textos terão pontos de vista tópicos e dinâmicos. Nesse sentido, Strachey (Freud, 1977, v. XIX, p. 17) comenta, em seu texto introdutório do “Ego e o Id”:

Desde o início, porém, uma outra noção, mais obscura, já se achava envolvida (como era claramente demonstrado pelos diagramas pictóricos): a noção de ‘sistemas’ da mente. Isto implicava uma divisão topográfica ou estrutural da mente baseada em algo mais que função, uma divisão em partes às quais era possível atribuir em certo número de características e métodos de operação diferenciantes [sic].

Assim, em 1900 já começava a se esboçar algo que depois viria a se tornar a segunda tópica, mas somente mais tarde Freud efetivamente pôde dar estrutura a essa segunda proposta de aparelho psíquico. O texto “Além do princípio do prazer”, de 1920, foi o marco da transição entre as tópicas, quando a noção do inconsciente pareceu ser insuficiente para tratar dos conceitos de ego, superego e id. Com a transição, Freud foi capaz de apresentar novos avanços em sua teoria. O id passa a ter dois empregos principais: um, com o mesmo significado de inconsciente, pois se trata de uma parte da mente; e outro, como uma instância diferenciada dos demais e que representa o indivíduo em sua totalidade.

Já o ego aparece com duas construções: uma antes (evocando as pulsões do ego de recalque sexual e de autoconservação) e outra depois do conceito de narcisismo (pulsões de vida e de morte). O ego passa a corresponder a algo que está entre as instâncias inconscientes e pré-conscientes (Ics-Pcs) e inclui atividades, como censura, teste de realidade (se o que estamos vendo é real e compartilhado com outros) etc., e autocrítica. Assim:

Pode haver uma ‘instância psíquica especial’ cuja tarefa é vigiar o ego real e medi-lo pelo ego ideal ou ideal de ego – ele parecia utilizar indiscriminadamente os termos [...] Atribuiu um certo número de funções a essa instância, inclusive a consciência normal, a censura do sonho e certos delírios paranoicos. (Freud, 1977, v. XIX, p. 21)

Essa “instância psíquica especial”, que Freud depois a chama de superego, posteriormente passa a ser responsável por alguns estados patológicos de luto. O autor a assemelha ao ideal do ego, sendo que o superego é o que vai prevalecer e permanecer depois. Esse superego (Freud, 1923, p. 22) age como “o veículo do ideal do ego pelo qual o ego se mede”. Ele é derivado das catexias objetais infantis e é o que toma o lugar do Complexo de Édipo (pois nesse mecanismo há “a substituição de uma catexia objetal por uma identificação e introjeção do amor anterior” (Freud, 1977, v. XIX, p. 22), o que para o autor explica a existência da bissexualidade, na medida em que depende de com quem ocorre a identificação por substituição do amor).

Segundo o autor, o ego é uma instância ligada à consciência que regula as descargas de excitações para o mundo externo, a linguagem e as necessidades do indivíduo. Sobre isso, Laplanche e Pontalis (2001, p. 124, grifo do original) afirmam:

[O ego] instância que Freud, na sua segunda teoria do aparelho psíquico, distingue o id do superego. Do ponto de vista tópico, o ego está numa relação de dependência tanto para com as reivindicações do id, como para com os imperativos do superego e exigências da realidade. Embora se situe como mediador, encarregado dos interesses da totalidade da pessoa, a sua autonomia é apenas relativa.

Do ponto de vista dinâmico, o ego representa eminentemente, no conflito neurótico, o polo defensivo da personalidade; põe em jogo uma série de mecanismos de defesa, estes motivados pela percepção de um afeto desagradável (sinal de angústia).

Do ponto de vista econômico, o ego surge como um fator de ligação dos processos psíquicos; mas, nas operações defensivas, as tentativas de ligação da energia pulsional são contaminadas pelas características que especificam o processo primário; assumem um aspecto compulsivo, repetitivo, desreal.

TEMA 2 – O ID E O SUPEREGO

Embora uma parte do ego seja consciente, outra está ligada ao inconsciente, e é essa que tentamos acessar e trazer à consciência na análise para compreender a origem dos sintomas. As percepções recebidas pelo ambiente e as sensações e sentimentos oriundos de dentro são cuidadosamente avaliados pelo ego antes de se tornar conscientes. Para entender um pouco melhor esse funcionamento do ego, precisamos também compreender o id e o superego.

O inconsciente é um princípio originário que, quando não consegue expressão ou satisfação de suas pulsões, forma o sintoma, que se situa na “zona” compartilhada entre o id e o ego inconsciente. Nesse inconsciente está a fonte originária das pulsões, conceito de natureza quantitativa em que o somático (a libido) e o psíquico (as representações) se encontram. Segundo Laplanche e Pontalis (2001, p. 219), “os seus conteúdos [do id], expressão psíquica das pulsões, são inconscientes, por um lado hereditários e inatos e, por outro, recalcados e adquiridos”.

O id é uma força interna desconhecida e indomável; poderíamos compará-lo à “Raposa de Nove Caudas”, entidade que vive dentro de Naruto (série de mangá). Essa raposa é uma Bijū, uma das bestas com caudas ou bestas de chacras, que possui grande poder, mas obriga Naruto a ficar constantemente acordado (ou seja, com a censura ativa) ou pode tomar conta do corpo do jovem ninja e destruir tudo o que está em sua volta. Ao mesmo tempo, quem acompanha a série percebe que a raposa também representa, em alguma medida, a personalidade do garoto, da mesma forma que o id constitui o polo pulsional da personalidade e que precisa ser controlado pelo ego e pelo superego. Apesar de em um primeiro momento a teoria freudiana classificar o id como sendo uma organização caótica, depois conclui que, na verdade, há alguma organização, especialmente quando observamos que as próprias pulsões são divididas em pulsões de vida e de morte.

Já o superego é uma instância de julgamento, de censura. Ele provoca o sentimento de culpa, a moralidade e o que é o ideal – sendo o sucessor do narcisismo e herdeiro do Complexo de Édipo (estabelecido, portanto, durante e após a fase anal). Autores como Klein e Spitz consideram a existência de um superego precoce ou primário, precursor de um superego final, e que já estaria presente desde a fase oral, quando a criança esboça comportamentos sádicos com o seio materno e introjeta objetos “bons” e “maus”.

O ego é corporal, é a projeção do corpo em sua totalidade e o que constitui nosso caráter. Sem ele, seríamos como os animais, que respondem a seus desejos e necessidades, reagem no modo de ataque ou figa e contêm seus impulsos quando há a censura de outro animal do bando como um líder ou uma fêmea. O ego nos coloca em um patamar diferenciado em relação aos animais, pois medeia nossos julgamentos e cria formas alternativas de lidar com o sofrimento e com aquilo que é recalcado. Segundo Freud (1977, v. XIX), o ego existe desde a fase oral. Nessa fase, o ego é um ego fraco que, diante das exigências pulsionais, sujeita-se a elas ou tenta recalcá-las. Já no narcisismo, esse ego assume as características do objeto e tenta forçar o id a reconhecer o ego como também um objeto de amor – há aqui a transformação da libido do objeto em libido narcísica, o que leva a um abandono dos objetos sexuais e uma espécie de sublimação, já que o indivíduo se basta consigo mesmo.

Quando o complexo de castração e o Complexo de Édipo ocorrem, o superego, como um herdeiro desse Édipo, interrompe o ego e o força a redirecionar o investimento para objetos externos – “você não pode ser autossuficiente; busque outro para satisfazê-lo”, diz esse superego, “mas com algumas regras e restrições – você deveria ter essas características, como seu pai ou sua mãe, e não deveria ter essas outras características, pois essas pertencem somente a seus pais ou figuras parentais relevantes”.

Esse superego, portanto, é o contraponto direto do id. À medida que o indivíduo cresce, esses representantes do que o superego permite ou não permite vão sendo substituídos por outras figuras, como professores, amigos ou outras figuras colocadas em posição de autoridade (padres, médicos, policiais etc.).

TEMA 3 – O DESENVOLVIMENTO INFANTIL GLOBAL E OS ORGANIZADORES PSÍQUICOS DE SPITZ

De forma didática, podemos falar sobre desenvolvimento infantil sob três diferentes perspectivas: cognitiva, motora e afetiva. O amadurecimento de cada uma dessas funções ocorre em paralelo e foi analisado por diversos autores. Piaget (1932), com relação ao desenvolvimento cognitivo, estabeleceu a existência de quatro fases principais: sensório-motor (de 0 a 2 anos), pré-operatório (de 2 a 7 anos), operatório-concreto (até 12 anos) e operatório-formal (a partir de 12 anos). Já o desenvolvimento motor tem, de modo geral, as características conforme indica o Quadro 1:

Quadro 1 − Características do desenvolvimento infantil

Marcos do desenvolvimento (alguns exemplos)

Idade

Aprende a olhar para uma pessoa, demonstra prazer e desconforto, adquire a capacidade de erguer a cabeça, aprende a diferenciar dia e noite, emite sons, reconhece quando falam com ela, faz gestos com as mãos e a cabeça, usa ao menos uma palavra com sentido, diferencia familiares de estranhos, imita gestos e brincadeiras, arrasta ou engatinha

Até 1 ano

Anda sozinho e cai raramente, combina duas ou três palavras, distancia-se da mãe, leva alimentos à boca com as próprias mãos, corre e sobe ou desce degraus

De 1 a 2 anos

Diz o próprio nome e nomeia objetos como sendo seus, veste-se com auxílio, usa frases e começa a ter controle dos esfíncteres

De 2 a 3 anos

Reconhece mais de duas cores, brinca com outras crianças e imita pessoas de seu cotidiano

De 3 a 4 anos

Veste-se sozinha, alterna momentos cooperativos com agressivos, é capaz de expressar preferências e ideias próprias

De 4 a 6 anos

Fonte: elaborado com base em Brasil, 2002.

Com base nas constatações sobre os marcos do desenvolvimento infantil, Spitz (1979) desenvolveu sua teoria sobre a existência de três organizadores psíquicos, que ocorrem basicamente no primeiro ano de vida da criança:

  • O primeiro organizador é chamado de estágio pré-objetal e ocorre até três meses. Durante esse período, o sorriso e o choro surgem como as primeiras formas de se relacionar com outras pessoas, em especial a mãe ou o cuidador. Dessa relação, vêm os primeiros processos de pensamento associados às experiências de prazer e desprazer. Nessa fase, a boca serve tanto para a alimentação quanto para conectar o bebê a seu objeto de prazer, a mãe. A oralidade antecede todas as funções que se desenvolvem, como olfato, visão, audição, paladar e tato. A partir do rosto da mãe, a criança também desenvolve a memória, que no início se dá quando o objeto reaparece exatamente como estava antes (ou seja, se a mãe colocar óculos, por exemplo, é comum o bebê se assustar e pensar que a mãe foi embora; somente depois a criança compreende que a pessoa com óculos à sua frente ainda é sua mãe).
  • O segundo organizador é chamado de estágio precursor do objeto e ocorre entre três e oito meses: nesse estágio, o tônus muscular permite à criança segurar a cabeça e permanecer sentada, além de pegar e soltar objetos por vontade própria. Surgem o medo de estranhos e a compreensão de ordens e proibições, e a criança passa a ser capaz de imitar alguns comportamentos dos pais.
  • O terceiro organizador psíquico é o estágio do objeto real. Nessa etapa, a criança explicita sua preferência pela mãe, surge a compreensão de palavras como “não”, “tchau” e “passear”, e os primórdios da comunicação e da fala, ainda que somente a mãe compreenda o que ela lhe diz. O não é o primeiro conceito abstrato adquirido.

TEMA 4 – A TESE DE MELANIE KLEIN

Esse estudo de Spitz foi inspirado, em grande medida, pelos trabalhos de Winnicott, seguidor da teoria kleiniana. Melanie Klein foi uma autora pós-freudiana cuja principal proposta de mudança foi a de que as estruturas infantis passariam por duas posições principais: a esquizoparanoide e a depressiva. A primeira ocorre durante os quatro primeiros meses de vida e se constitui como uma modalidade na qual as pulsões agressivas coexistem com as de prazer, sendo ambas igualmente forte e fundidas. Além disso, o objeto é parcial (o principal objeto parcial é o seio) e clivado entre bom e mau, estando aqui presente um sentimento constante e persecutório de angústia pelo medo do objeto mau.

Os processos psíquicos predominantes nessa posição são a introjeção e a projeção, com a recusa no reconhecimento da realidade que envolva o objeto mau e o controle absoluto sobre ele. A inveja dessa fase é uma expressão oral-sádica dos impulsos destrutivos que operam desde o nascimento; têm uma base constitucional e se apresentam pelo impulso invejoso de tomar e estragar o objeto. Alguns dos principais mecanismos de defesa aqui são: idealização, o que deixa o objeto certo tempo fora do alcance do ataque invejoso; confusão, na qual há falha da clivagem primária entre o bom e o mau objeto; fuga da mãe para outras pessoas; dispersão dos sentimentos de amor e gratidão para outra pessoa que não é a mãe; depreciação do objeto e ingratidão; autodepreciaçãointrojeção voraz do peito, de tal modo que ele fica totalmente possuído na mente do bebê e o sujeito se confunde com ele; o provocar inveja nos outros; o abafar do amor e intensificar o ódio, mostrados na forma de indiferença ao que causaria inveja; retração, com o afastamento material ou afetivo para não ter a oportunidade de sentir inveja; reforço de independência, com o sujeito exagerando sua autossuficiência; e acting out, no qual o desejo se realiza mediante uma ação cujo sentido permanece inconsciente.

Já a posição depressiva, que no desenvolvimento normal se dá no segundo trimestre do primeiro ano de vida, instaura-se após a posição esquizoparanoide e tem como principal característica a percepção da mãe como figura total, e não apenas como um objeto parcial (o seio materno), levando assim a uma aproximação entre o objeto fantasioso interno e o objeto externo, pois o ego tem maior capacidade de integrar e sintetizar os objetos.

As pulsões de prazer e ódio se combinam, e o objeto é amado e odiado simultaneamente, criando um sentimento de ambivalência com relação ao objeto. Nesse momento, a angústia infantil também sofre uma mudança, pois se antes o medo de perda do objeto provocava o sadismo infantil, na posição depressiva esse sadismo é alterado para uma inibição da agressividade e uma reparação do objeto pelos danos causados das fantasias onipotentes. Com isso, a relação com a mãe deixa de ser exclusiva, e a criança começa a se aproximar e a se identificar com outras pessoas, o que Melanie Klein chama de Complexo de Édipo precoce.

Para que o ego da criança possa se estabelecer de forma saudável, é fundamental que ela ame e seja amada, pois a integração de seu ego depende das relações com o objeto materno. A falta de segurança quanto ao amor do outro gera desintegração e fragmentação, que estão intimamente ligadas ao medo da morte. Embora o brincar tenha sido mais profundamente explorado por Winnicott, Klein já observara em seus estudos que o brincar infantil representa suas experiências, traduz os sentimentos da criança e a auxilia, como uma espécie de projeção, a elaborar e dar conta desse mundo, principalmente daquilo que não é dito.

Nas consultas com crianças, Klein muitas vezes verbalizava a seus pequenos pacientes situações e medos que, de alguma forma, não eram possíveis de ser verbalizados em palavras, mas que apareciam nas brincadeiras mesmo que as crianças não fossem capazes de compreender por que estavam brincando daquilo. Para aqueles que já trabalharam com crianças adotadas, por exemplo, é comum vermos nos desenhos e brincadeiras elas expressarem que, de alguma forma, sabem de sua condição, e pela falta de informação sentem medo e insegurança. O brincar e os desenhos aqui surgem como uma tentativa de elaboração da informação omitida, e o papel do terapeuta é ajudar a criança e a família a traduzirem tal informação de maneira a dar mais segurança à criança e, com isso, reintegrar seu ego.

TEMA 5 – CONTRIBUIÇÕES LACANIANAS

Ao longo de nossa jornada do conhecimento nesta disciplina, vimos muitos conceitos novos. Basicamente, o que precisamos compreender no desenvolvimento das crianças é que toda análise de um sintoma infantil precisa considerar o contexto que elas se inserem, sua família, escola. É na interação com a psicologia, a pediatria e a pedagogia que podemos ser capazes de compreender os sintomas infantis. Segundo Manonni (1964, p. 196), “minha experiência ensinou-me que as diferentes formas de reeducação, tão preciosas quando são empregadas com conhecimento de causa, de nada servem quando a criança não está apta a beneficiar delas como indivíduo autônomo e responsável”. Assim, a intervenção psicanalítica precisa encontrar o momento certo para ter efeito, ou o sintoma, a “palavra amordaçada”, apenas seguirá seu curso e poderá até erguer defesas obsessivas contra as tentativas de tratamento.

A terapia infantil é diferente da terapia com adultos, das técnicas rígidas que executamos ao trabalhar com psiconeuroses. É diferente do trabalho pedagógico, do trabalho assistencial e de reeducação, pois o sintoma, como cita a autora, tem “uma função biológica como medida defensiva e razão de ser social” (Manonni, 1964, p. 204). É também diferente do atendimento médico, pois se o pediatra toma muitas vezes o sintoma “ao pé da letra”, o analista considera o sintoma da criança como estando inserido na “ideia fantasma” desse corpo – pois a imagem do corpo, como representação especular de um eu-pele, tem papel fundamental na gênese da personalidade (Andrade, 1984) – e na representação mitológica do sintoma familiar (ou seja, o não dito familiar se transforma em mito no imaginário infantil).

As crianças, por serem em demasiado sensíveis ao ambiente no qual se encontram e atentas às necessidades das pessoas que amam, muitas vezes introjetam as preocupações e os sintomas dos adultos e projeta em seus próprios sintomas, e esses sintomas só podem ser reparados quando a angústia que foi mobilizada tiver sido libertada, pôde encontrar um caminho de liberação saudável. Ou seja, ao tratarmos uma criança,

tratar-se-á, em relação com a própria história dos pais, de fazer compreender a estes, a gênese das dificuldades do filho, sem chamar a atenção para a culpabilidade, valorizando os pais no seu papel de pais, a criança na sua condição de indivíduo, deixando ao mesmo tempo aparecer os mal-entendidos. (Manonni, 1964, 215-216)

A construção da imagem do corpo, na teoria lacaniana, tem relação direta com o estádio do espelho. O estádio do espelho, assim, é um equivalente do momento precoce do Complexo de Édipo, enquanto este ainda se encontra no narcisismo (ou seja, no momento intermediário entre o autoerotismo e o amor objetal após o Édipo).

No estádio do espelho, a criança inicialmente vê sua imagem e pensa ser outra criança (semelhante a alguns animais que pensam estarem vendo, no espelho, apenas um outro da mesma espécie); depois, ela entra em um período transitório, no qual tem dificuldade de compreender o que significa aquela imagem que vê no espelho, semelhante ao que observamos em alguns cachorros com inteligência superior. Por fim, passa a compreender que a imagem projetada é a dela, sendo como o principal sinal dessa mudança a sua capacidade de observar um detalhe em seu rosto refletido no espelho e tocar não o espelho, mas o próprio rosto. Ao alcançar essa fase, ela atravessa a ordem simbólica, que surge com a aquisição da linguagem, como estrutura, e a intervenção do pai ou do Nome do Pai (do ponto de vista freudiano, o Complexo de Édipo e o complexo de castração), como lei associada ao real e ao imaginário. O real, aqui, constitui o que subsiste fora da simbolização, e o imaginário é da ordem do inconsciente, que se expressa por meio do simbólico a partir das experiências vividas pelo indivíduo.

NA PRÁTICA

A prática que traremos aqui será sobre a morte. Quando falamos desse tema com as crianças, o processo é totalmente diverso daquele encontrado com adultos. Em geral, elas têm dificuldade de compreender esse conceito, por demais objetivo e subjetivo ao mesmo tempo; mais precisamente, a dificuldade reside na ideia de que alguém pode partir e nunca mais voltar.

Em meio à pandemia e nos hospitais, muitos pais se veem diante do desafio de tratar do assunto com seus filhos, especialmente quando as crianças vivem diretamente as experiências de perdas. Uma criança de três anos, por exemplo, ainda está em processo de desenvolvimento, e sua compreensão a respeito da morte precisa ser discutida várias e várias vezes para que ela apreenda um conceito que só o seria muito mais tarde. Tal como na investigação sobre “de onde vêm os bebês?”, a criança que vivencia o luto também se encontra impelida a descobrir “o que é a morte?”. Em um exemplo apresentado no hospital, uma criança associou a morte do irmão a um brinquedo que quebrou, pois ambos não seriam restaurados, não podiam ser substituídos e, de alguma forma, ela teria que aprender como lidar com aquela nova condição.

Um menino de 13 anos, à beira da morte por causa de um câncer, tentava compreender como poderia aproveitar a vida que lhe restava e aprender algo novo se não lhe restava mais tempo. Além disso, ele se preocupava sobre como poderia explicar à irmã mais nova por que não estaria com ela no próximo aniversário, sem com isso criar uma dor que fosse insuportável na menina. E, estando completamente fora do que se espera para uma criança de sua idade, decidiu chamar os pais e lhes dizer que deveriam parar de brigar, que deveriam parar de se culpar e culpar os médicos pela condição que ele se encontrava, pois isso não resolvia nada, eles sofreriam mais e o menino não conseguiria partir em paz. Quando os pais se desculparam e lhe prometeram que aprenderiam a conviver e que cuidariam bem da irmã, o menino se foi.

O amor que as crianças enfermas recebem nos leitos de hospital também é fundamental para a continuidade do desenvolvimento psicossexual. Permitir a elas ter os mesmos hábitos de uma criança saudável, usar roupas de sua idade, ser abraçadas e não viver em uma bolha (como literalmente ocorreu com um menino americano que viveu 12 anos em uma bolha para não se contaminar) são alguns dos exemplos. No passado, os bebês que nasciam eram levados para uma sala isolada a fim de permitir à mãe um pouco de descanso. Depois, os pediatras observaram entre as crianças uma expressiva diferença no sorriso e na capacidade de reagir ao outro quando eram levadas para os berçários e quando podiam ficar ao lado das mães.

Outros experimentos que colocavam macacos de pelúcia perto de filhotes órfãos geravam um desenvolvimento superior em comparação com filhotes privados de qualquer contato físico. Assim, o desenvolvimento psicossexual infantil é diretamente influenciado por questões genéticas e pelo amor que recebemos.

FINALIZANDO

Nesta aula, fizemos uma breve apresentação sobre o texto “O ego e o id”, apresentamos a teoria dos organizadores psíquicos de Spitz, as contribuições kleinianas e lacanianas para os estudos a respeito de crianças. Por fim, na atividade prática trouxemos o tema da morte como o correlato para as investigações infantis acerca da origem dos bebês.

Esperamos que você tenha aproveitado as discussões propostas aqui para conhecer um pouco mais das origens da psicanálise e convidamos a continuar explorando esse campo do saber tão envolvente como é a psicanálise.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, M. L. A. A abordagem psicanalítica. In: _____. Distúrbios psicomotores: uma visão crítica. São Paulo: EPU, 1984. p. 55-60.

BIRMAN, J. Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1991.

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FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (1886-1899) – livro X, XI e XII. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. v. 1-3.

KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

_____. Psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1932.

_____. Temas de psicanálise aplicadaRio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MANONNI, M. A criança atrasada e a mãe. São Paulo: Martins Fontes, 1964.

MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1980.

PIAGET, J. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus, 1932.

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

SPITZ, R. A. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

WINICOTT, D. O brincar e a realidadeRio de Janeiro: Imago, 1975.

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