CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM PSICANÁLISE
AULA 5
Prof.ª Juliana Santos
CONVERSA INICIAL
Nesta abordagem, estudaremos o tema da repetição. Como vimos anteriormente, a repetição é um fenômeno que foi observado por Freud em sua prática clínica.
Os pacientes, na maioria dos casos, ao invés de caminhar de acordo com o princípio de prazer, repetiam situações que em nenhuma instância psíquica haviam sido prazerosas.
Assim, ele chama de pulsão de morte a tendência que impele o sujeito a uma compulsão à repetição. Portanto, a pulsão de morte se opõe à pulsão de vida, que objetiva a satisfação sexual. Portanto, a esse novo dualismo pulsional, Freud deu a seguinte conotação:
- Eros ® pulsão de vida, equivale às pulsões sexuais, visa a imortalidade da vida pela procriação da espécie. A pulsão de vida está ligada a um objeto.
- Tanatos ® pulsão de morte, equivale a uma busca de eliminação total das tensões, pela qual tende ao retorno a um estado mítico originário, ou seja, um estado anterior à vida. A pulsão de morte não está ligada a um objeto, sendo uma energia solta no psiquismo.
Para chegar à compreensão da pulsão de morte, Freud estabeleceu uma linha de pensamento que tem início no texto Recordar, repetir e elaborar, de 1914. Depois, ele publica O estranho, de 1919, em que o tema da repetição é abordado por diferentes vieses, até concluir a sua elaboração final com a tese da pulsão de morte. Assim, no primeiro tópico vamos esclarecer essa linha de pensamento freudiano, a fim de compreender os seus avanços teóricos.
Em seguida, vamos trazer as contribuições de Lacan, que deram um novo rumo à escuta clínica, pelo desenvolvimento do conceito de repetição. Para alcançar o nosso objetivo, é importante compreender o modo como Lacan aborda o funcionamento psíquico. Assim, antes de seguir, preste atenção em nossas explicações preliminares.
Sabemos que Freud concebeu o funcionamento psíquico através de dois modelos do aparelho psíquico: a primeira tópica, dividida em 3 sistemas (inconsciente, consciente e pré-consciente), e a segunda tópica, dividida em instâncias (Eu, Supereu, com partes conscientes e inconscientes, e Isso, que engloba todo o inconsciente, onde se localiza o núcleo das pulsões).
Por sua vez, Lacan concebeu o funcionamento psíquico através de três registros: real, simbólico e imaginário.
- Real: são as experiências vividas que não passam por simbolização, ou seja, não passam pela linguagem. Imagine um bebê quando nasce – ele vive muitas experiências que deixam registros em seu psiquismo, algumas delas serão simbolizadas, isto é, ganharão um sentido, um dizer sobre o vivido; mas outras nunca serão simbolizadas, ficarão no registro real.
- Simbólico: são os registros simbolizados; contudo, esses registros são frutos de uma simbolização primeira, de uma lei, no qual o sujeito estará referido, trata-se do outro simbólico, lugar da lei e linguagem.
- Imaginário: são os registros especulares da imagem que produz uma realidade psíquica para o sujeito a partir de sua relação com o real e o simbólico. Assim, o imaginário é aquilo que envolve o sentido e o simbólico, produzindo uma ilusão para o sujeito.
Não podemos seguir com Lacan sem a concepção desses três registros. Afinal, inclusive a repetição, como veremos, apresenta o alcance desses registros, de modo que existe algo que se repete que está no registro do real, razão pela qual o sujeito nunca poderá se recordar desse acontecimento. Nesse sentido, Lacan traz uma nova dimensão para o conceito de repetição na teoria psicanalítica. Dito tudo isso, vamos seguir em frente!
TEMA 1 – REPETIÇÃO NA TEORIA PSICANALÍTICA
No início de sua prática com a psicanálise, Freud observou que o sujeito portava uma verdade que não se oferecia docilmente à consciência. Esse material esquecido era exatamente o alvo do tratamento, pois, segundo Freud, a verdade da doença era apreendida por detrás desse esquecimento. Portanto, toda técnica utilizada até esse momento tinha como finalidade a rememoração.
No entanto, ao iniciar o tratamento da jovem Dora, Freud se confronta com um novo elemento, que seria decisivo para o futuro da psicanálise: a repetição. No texto Recordar, repetir e elaborar, Freud (1996c, p. 93), declara: “o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo”. A repetição passa a ser o novo referencial da escuta clínica, e nesse quadro a transferência ganha uma nova perspectiva (Freud, 1996c, p. 93):
Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual. Devemos estar preparados para descobrir, portanto, que o paciente se submete à compulsão, à repetição, que agora substitui o impulso a recordar, não apenas em sua atitude pessoal para com o médico, mas também em cada diferente atividade e relacionamento que podem ocupar sua vida...
Freud foi o primeiro a pensar o aspecto da repetição como um fenômeno clínico cuja fonte está na constituição do sujeito. Os protótipos infantis da relação de amor mãe-bebê serão posteriormente repetidos pelo sujeito em sua vida amorosa e até mesmo na dinâmica de transferência. Garcia-Roza (1986, p. 23) declara:
O que se repete são protótipos infantis, de tal forma que o analista, ao ser capturado nestas repetições, toma o lugar da imago paterna ou materna, dando lugar à transferência. Essa compulsão a repetir padrões arcaicos substitui a recordação, o que faz com que Freud identifique a repetição como uma resistência: "Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar”.
A repetição, portanto, ocupa um lugar de resistência que impede a associação livre, pois o sujeito atua sem saber que o faz. Por esse mesmo motivo, o material esquecido não é recuperado por meio de lembranças.
1.1 O ESTRANHO
Cinco anos depois, a questão da repetição seria retomada no artigo O estranho (Das Unheimlich). Freud (1996a, p. 220) aponta para um novo aspecto da repetição, o assustador familiar: "O estranho é aquela categoria aterrorizante que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar".
O ponto principal desse texto é o seguinte: a categoria de coisas ou acontecimentos que provoca um estranhamento, ou seja, produz angústia, tem uma proximidade ao que é familiar, mas que permaneceu oculto. Freud quer dizer com isso que aquilo que é absolutamente novo, ou seja, que jamais se deu na experiência, não pode ser temido. Nesse sentido, o estranho (Unheimlich) é algo que se repete. Garcia-Roza (1986, p. 25) declara:
O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente. O Unheimlich é uma repetição diferencial e não uma repetição do mesmo. Freud refere essa repetição à própria natureza das pulsões, "uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer".
Ao elaborar sobre a ideia do estranho, Freud nos apresenta uma pesquisa com diversas traduções da palavra Unheimlich: no francês é inquiétant, sinistre; no espanhol é sinistro; e no árabe e hebreu o estranho tem o mesmo sentido de demoníaco. A definição que Freud sublinha é a de Schelling, como algo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz (Freud, 1996a, p. 278). Portanto, a categoria do estranho explicita, em sua terminologia, aquilo que Freud define como o estranho familiar.
No mesmo artigo, Freud faz uma análise do conto “Homem da areia”, de Hoffman, que conta a história de Nataniel, uma criança cuja mãe, na hora de colocá-la na cama para dormir, dizia: “vá pra cama, porque o homem de areia está chegando”.
Nataniel, sempre curioso a respeito dessa personalidade, certa vez perguntou para a babá sobre a veracidade do homem de areia. Ela confirmou a sua existência, declarando que o homem de areia é perverso e gosta de jogar areia nos olhos das crianças até que eles saltem para fora da cabeça.
Nataniel ficou muito impressionado com a história contada pela babá. Ele passou a associar a figura do homem de areia ao advogado Copélio, um homem estranho que visitava o seu pai todas as noites.
Para o azar de Nataniel, uma vez foi flagrado espionando o seu pai no escritório com Copélio. Depois de um ano, o seu pai morreu em uma explosão durante uma dessas visitas, o que o deixou bastante perturbado.
Anos depois, Nataniel se tornaria um estudante universitário. Foi morar numa cidade universitária, onde adquiriu o hábito de espionar a casa do professor Spalanzani, que morava em frente à sua casa. Certa vez, com uma luneta, ele observava a filha do professor, a jovem Olimpia. Era uma moça bonita, mas estranha. Nataniel se apaixonou por ela, porém Olimpia era, na verdade, uma boneca criada pelo professor, cujos olhos tinham sido colocados por Copélio, o homem de areia.
Para Freud, a estranheza do conto se encontra em dois pontos: o ato de arrancar os olhos e a presença da boneca, que fomenta em Nataniel a dúvida sobre a sua natureza. Freud afirma que a incerteza intelectual sobre o autômato (a boneca) é irrelevante frente à estranheza do ato de arrancar os olhos, que pode ser relacionado ao terror da castração sentido pelas crianças. Nesse sentido, Freud estabelece uma ligação com o sentimento de estranheza ao recalcado:
Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras constituiria então o estranho. [...] Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso linguístico estendeu das Heimliche (doméstico, familiar) para o seu oposto, das Unheimliche; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão. (Freud, 1996a, p. 300)
Portanto, nesse texto Freud estabelece uma relação entre o sentimento de estranhamento com uma repetição involuntária, ou seja, uma compulsão a repetir, pelo que o estranho é apenas algo que se repete. Esse ponto é essencial para elucidar a noção de real na teoria lacaniana. Portanto, guardem com cuidado a noção de estranho familiar.
No ano seguinte, Freud (1920) alinhou as suas elaborações a respeito da repetição, chegando a uma formulação final no texto Mais além do princípio de prazer, onde concebe a noção de pulsão de morte, considerando a manifestação da compulsão à repetição.
TEMA 2 – REPETIÇÃO DE FREUD A LACAN
Lacan considera o conceito de repetição como um dos pilares fundamentais da psicanálise, pois as suas dimensões abrangem a teoria e a clínica. No entanto, Lacan busca primeiramente desfazer o mal-entendido, pois percebe que a repetição, em sua época, estava sendo tomada pelo mesmo viés da transferência. Garcia-Roza (1986, p. 22) sublinha esse fato:
Lacan observa que a afirmação segundo a qual a transferência é uma repetição tornou-se lugar comum, e que embora a repetição esteja presente na transferência, e que foi a propósito desta última que Freud abordou o tema da repetição. "o conceito de repetição nada tem a ver com o de transferência".
O que Lacan sublinha aqui é que na transferência ocorre uma repetição. O que se repete só faz sentido em uma relação transferencial com o analista. Portanto, são conceitos diferentes. Em seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan os distingue e os coloca em série ao lado do inconsciente e da pulsão.
2.1 DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DA REPETIÇÃO
Provavelmente você já ouviu que “nada se cria, tudo se copia!”. Analisando brevemente a história da humanidade, podemos concluir que estamos sempre a caminho de repetir o mesmo, como se estivéssemos em uma roda gigante, fadados a passar pelo mesmo lugar a cada volta.
A noção de repetição já estava na filosofia. É possível encontrar, em ditados populares, frases que fazem referência à repetição, por exemplo: “A felicidade é o desejo pela repetição”; “A vida é um eterno dejà-vu”; “Viemos do pó e ao pó voltaremos”...
A repetição, portanto, se coloca para todos, no discurso social, como um saber. Freud se dedicou a criar uma teoria que pudesse conceber um sentido lógico para a compreensão desse fenômeno tipicamente humano. Assim, o sentido mais radical de repetição foi alcançado através do conceito de pulsão de morte, a partir do qual Freud apresentou uma tendência a retornar ao estado inorgânico submetido ao princípio de nirvana.
Em seu Seminário 2, O eu na teoria de Freud (1954-55), Lacan faz uma releitura do texto Mais além do princípio de prazer, estabelecendo uma relação simbólica à pulsão de morte. Afinal, para Lacan, Freud, quando estabeleceu a pulsão de morte, estava vislumbrando na verdade uma morte simbólica do sujeito, e não a morte de alcance biológico. Coutinho Jorge (2010, p. 62), em referência a essa passagem, define que se trata de uma morte da “vivência humana, do intercâmbio humano, da intersubjetividade”, pois há algo no humano que coage o sujeito a sair dos limites da vida.
Portanto, Lacan apreende o tema da pulsão de morte pelo registro da ordem simbólica, isto é, pela dimensão da linguagem, por meio da qual, o registro de um mais além da vida só poder ser inscrito pela linguagem. Coutinho Jorge (2010, p. 63-64), descreve:
O próprio ser humano se acha, em parte, fora da vida, ele participa do instinto [pulsão] de morte. É só daí que ele pode abordar o registro da vida. Como a ordem simbólica apresenta uma relação de exterioridade em relação ao sujeito, Lacan a situa como a própria pulsão de morte, vendo nesta uma relação com o símbolo, “com esta fala que está no sujeito sem ser a fala do sujeito”.
Portanto, a repetição como manifestação da pulsão de morte, no início dos ensinamentos de Lacan, está relacionada ao vigor da ordem simbólica, ou seja, o que se repete é algo que foi vivido e censurado, e que por isso participa do registro simbólico de forma autonômica. “A linguagem está relacionada com a pulsão de morte na medida em que ela determina o ser falante mais além de sua condição de vivente” (Jorge, 2010, p. 62).
No entanto, a partir do seminário 11, Lacan (2008) introduz um novo entendimento ao conceito de repetição. Se até o momento a repetição estava associada ao rigor do registro simbólico, nesse momento de seu ensino, Lacan demonstra que existe algo que se repete e que jamais alcançará a lembrança; para além do simbólico, a repetição tem a sua origem no registro real. “O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita onde, a res cogitans, não o encontra” (Lacan, 2008, p. 55). Portanto, a repetição, pensada a partir do registro do real, traz uma nova dimensão ao aspecto da repetição, pois estaria para além daquilo que o sujeito repete como resistência à lembrança, tornando-se uma nova categoria de repetição, associada ao O estranho de Freud, por se tratar de algo familiar, ainda que indizível.
TEMA 3 – REPETIÇÃO COMO RESPOSTA DO REAL
Portanto, a partir do seminário 11, a repetição ganha a dimensão do real. Bruce Fink (1997) sublinha que o real da repetição é justamente aquilo que não consegue ser encontrado ou rememorado, que está excluído da cadeia significante, ainda que faça girar a cadeia significante ao redor: “O analisando dá voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão, mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho”.
No texto A carta roubada, de 1956, Lacan demonstra o funcionamento significante e sua insistência na cadeia significante, ou seja, a repetição situada na ordem simbólica. A carta roubada é uma história escrita em 1844 por Edgar Allan Poe. Conta o sucesso do detetive Dupin na recuperação de uma carta comprometedora endereçada à rainha. A carta havia sido furtada dos aposentos reais na presença do casal real pelo chantagista ministro D.
A investigação acerca da carta se configura através da modulação escópica dos olhares dos envolvidos, pois foi assim que o detetive Dupin conseguiu localizar a carta escondida na casa do ministro D, enxergando aquilo que nenhuma visão inquieta tinha visto até então. Afinal, a carta roubada havia sido deixada exposta justamente para enganar os olhares de quem a procurava. Contudo, Dupin, ao se dar conta do plano, dá o troco na mesma moeda, surrupiando a carta do surrupiador e deixando uma marca registrada de seu gesto exitoso.
A carta, portanto, é o agente da história, pelo qual todos os personagens se posicionam, ordenando três tempos e três olhares:
- O olhar que nada vê;
- O olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ter encoberto o que ele oculta;
- O olhar que vê que os olhares anteriores deixam a descoberto o que é para esconder.
Através dessa analogia, Lacan aponta que a linguagem é o lugar do equívoco, ou seja, a fala falada se distancia da comunicação e da informação, assim como o olhar de quem está de posse do olhar da carta, que perde o olhar 2 e 3.
Assim, o sentido se volta ao mesmo lugar, ou seja, à repetição daquilo que se repete. O sujeito, na medida em que pensa, não o encontra, pois está radicalmente excluído, por se tratar de uma vivência para além da linguagem. Logo, para Lacan, a repetição envolve o "impossível de pensar" e o "impossível de dizer", mas que insiste e retorna à cadeia significante.
Isso significa que o sujeito não consegue estar de posse da totalidade, pois existe algo a mais na experiência, que está radicalmente excluído, ainda que essa totalidade não se exclui na repetição. Ou seja, como a ordem simbólica apresenta uma relação de exterioridade em relação ao sujeito, Lacan a situa como a própria pulsão de morte, enxergando uma relação com o símbolo, “com esta fala que está no sujeito sem ser a fala do sujeito” (Jorge, 2010, p. 64). Isto é, um para além da linguagem.
3.1 TIQUÊ E AUTÔMATON
Em Lacan, podemos situar dois aspectos da repetição, apontados no seminário 11: o autômaton, associado ao simbólico, e a tiquê, associada ao real. Esses termos foram emprestados do vocabulário de Aristóteles sobre princípios, na chamada teoria das quatro causas, exposta no Livro I da Metafísica, com respeito aos princípios ou fatores explicativos das coisas. O filósofo articula o tema em um conjunto mais amplo, considerando as distinções fundamentais de sua filosofia: essência-acidente, ato-potência e matéria-forma, no sentido de mostrar que a filosofia consiste fundamentalmente em uma indagação de princípios.
Nesse contexto, as noções de tyche e automaton estão associadas à noção de acaso, com referência a algo que acontece sem inteligibilidade da razão humana. A tyche designa uma causa oculta para a razão humana, enquanto o automaton refere-se uma causa acidental (Garcia-Roza, 1986, p. 39).
Lacan usa esses termos para definir os aspectos da repetição. O autômaton, como explica Fink (1997), corresponde ao desdobramento automático, no inconsciente, da cadeia significante (como o alinhamento dos signos que aparecem na rede α, β, ϒ, δ). Contudo, “o real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer" (Lacan, 2008).
Portanto, segundo Lacan, o autômaton está articulado ao simbólico, cuja repetição configura o seu aspecto de insistência automática das redes significantes, ou seja, de “insistência dos signos”. Garcia-Roza (1986, p. 42-43) complementa essa noção de insistência dos signos:
A insistência dos signos de que Lacan nos fala é a própria insistência do desejo; a articulação temporal entre os significantes constituindo-se como presença do desejo cujo objeto absoluto falta sempre. O objeto presente, ilusão do objeto absoluto, é o que constitui o imaginário, marcado pela decepção, pela negatividade, pela castração. Entre esses dois objetos – o presente ilusório e o ausente absoluto – é que vamos situar a função do real.
No real, temos a tiquê, que está para além do autômaton, pois nela está marcado o encontro com a falta. Afinal, o que se repete sob o jugo da tiquê está para além dos jogos dos signos. O seu retorno (no autômaton), por sua vez, está para além da fantasia. Ou seja, para além do que é regulado pelo princípio de prazer (o autômaton) há o real.
Assim, o real que se repete é a função que caracteriza a tiquê. O real se situa entre dois objetos – o presente ilusório e o ausente absoluto. Bruce Fink (1997, p. 241-42), traz um esclarecimento sobre esse assunto:
O real aqui é o nível de causalidade, o nível daquilo que interrompe o funcionamento tranquilo do autômaton, da seriação automática, sujeita à lei regular dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do analisando estão destinados a perder sempre o alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a interpretação analítica pode atingir a causa, levando o analisando a um encontro com o real: tiquê. O encontro com o real não está situado no nível do pensamento, mas no nível onde a "fala oracular" produz não-senso, aquilo que não pode ser pensamento.
Desse modo a repetição, como apresentada por Lacan, está articulada em duas vertentes: autômaton e tiquê, que se manifestam, para o sujeito, indissociável, entre o simbólico e real. A repetição é o fenômeno clínico da manifestação da pulsão.
TEMA 4 – PULSÃO NOS ENSINOS DE LACAN
Freud criou o conceito de pulsão para abordar a sexualidade humana. Porém, de acordo com o que vimos, o verdadeiro estatuto da pulsão só foi introduzido com a noção de pulsão de morte, como declara Jorge (2010, p. 121): “tudo se passa como se o conceito de pulsão fosse sendo construído na direção desse ponto de conclusão que é a pulsão de morte”.
Existia um esforço para isolar a parte patológica da estrutura, mas Freud teve que admitir certa dificuldade com esse trabalho, pois reconheceu que as duas espécies de pulsão (vida e morte) sempre se apresentam amalgamadas, ou seja, nunca estão em estado puro, mas sim intrincadas uma na outra. Nesse sentido, não haveria a possibilidade de atestar a patologia para uma delas, a não ser no desintrincamento dessa fusão, pelo qual a pulsão de morte se apresentaria em moldes destrutivos para a vida.
Assim, a pulsão de morte, em alguns momentos dos escritos freudianos, também é chamada de pulsão de destruição, pois tende a voltar ao estado de não ser. Lacan (2008), no ensino XIII do seminário 11, destaca a função do impossível da pulsão de morte, situando o real: “a questão sobre o possível, e o impossível não é forçosamente o contrário do possível, ou bem ainda, porque o oposto do possível é seguramente o real, seremos levados a definir o real como o impossível”.
Pelo fato de Freud não ter nomeado uma energia específica da pulsão de morte, pois a libido é a única energia das pulsões, no pretenso dualismo pulsional freudiano podemos situar desde aí um monismo. Nesse sentido, Lacan dará a seguinte interpretação a respeito das pulsões: toda pulsão é um seguimento da pulsão de morte.
Contudo, Lacan não põe em xeque o dualismo freudiano, pois definiu desde aí que a pulsão pode assumir diferentes qualidades. Assim, Jorge (2010, p. 31) destaca a característica fundamental que estabelece um denominador comum entre a pulsão de vida e a pulsão de morte: o seu caráter conservador.
Freud menciona então duas tendências que, embora aparentemente se oponham, são fruto dessa mesma característica comum: tendências conservadoras que incitam à repetição e tendências cuja ação se manifesta através de formação nova e evolução progressiva. Trata-se, para ele, de levar às últimas consequências a hipótese segundo a qual todas as pulsões se manifestam através da tendência a reproduzir o que já existe. Como já disse o poeta, “Lar é de onde se vem”.
No seminário VII, A ética da psicanálise, Lacan (2017) demonstra outra dimensão da pulsão de morte, que está para além da vontade de destruição, considerando a vontade de recomeço, do corte, que abre para o novo, convergindo com a pulsão de vida, mas para outro sentido. Continho Jorge (2010) aborda o tema a partir da figura a seguir.
Figura 1 - Pulsão e ser

Ou seja, a pulsão de morte é o que leva o sujeito e o que produz corte em uma cadeia significante; é o que produz o novo ao invés do mesmo, em oposição ao caminho feito pela pulsão de vida.
4.1 TODA PULSÃO É PULSÃO DE MORTE
Lacan inscreve o circuito da pulsão por um mesmo denominador, como descreve Freud: “uma força constante rumo a um alvo, à satisfação”. Porém, a satisfação da pulsão é impossível de ser obtida, pois o objeto de satisfação plena é o objeto que Freud chamou das Ding – “a coisa”. Ou seja, ele nunca existiu, pois trata-se de um objeto suposto pelo aparelho psíquico. Dessa forma, o máximo de satisfação que a pulsão é capaz de obter se liga aos objetos que oferecemos, mas logo ela quer outro e outro, sempre em busca de outra coisa, pois o que a pulsão quer é das Ding, mas o que recebe é o objeto a. Jorge (2010) nos apresenta dois gráficos que nos ajudam a compreender que toda pulsão é pulsão de morte.
Figura 2 – Pulsão: vida e morte

Figura 3 – Pulsão sexual e de morte

Oferecemos à pulsão os objetos para a sua satisfação, ainda que parcial, mas esses objetos em seguida já não a satisfazem, e ela passa a querer outro objeto: “Quero outro, quero outra coisa”. Afinal, o que de fato a pulsão visa é das Ding, mas o que ela recebe é o objeto a. “E a nossa vida cotidiana é feita disso, a vida humana é regida por esse vetor, tendendo a obter a absoluta satisfação, impossível de ser obtida. Esse é o dramático, se não o trágico, da existência humana” (Jorge, 2010, p. 134).
TEMA 5 – OBJETO DA PULSÃO
Vimos então que a pulsão se satisfaz parcialmente como objeto a, mas o que ela almeja de fato é das Ding. Mas o que são esses objetos da pulsão? Vamos ver a resposta dessa questão ao longo do curso, pois não se trata de uma resposta simples. Ela envolve conceitos variados, por se tratar de um objeto que faz parte da experiência singular de cada sujeito.
Freud introduz o conceito de das Ding no Projeto (Freud, 1996b). Das Ding significa “a coisa”, ou seja, é aquilo que nos é oferecido, mas não é coisa nenhuma, pois não se trata de algo em si. Das Ding se inscreve no psiquismo como algo que já esteve de posse do sujeito e foi perdido. Por tanto, a partir de Lacan (1960), das Ding não estará no campo da memória, nem da percepção, pois a sua relação se encontra com o objeto, a mãe. Assim, das Ding é da ordem daquilo que não é predicável, de modo que se mantém igual, enquanto perdido.
Eu costumo pensar em das Ding como sendo a totalidade da experiência da relação materna (mãe-bebê), algo dessa relação que escapa, permanecendo como uma incógnita para o ser do sujeito (o que foi isso?), deixando um espaço faltoso sobre aquilo que um dia foi pleno em si.
Para dar conta dessa falta inapreensível, pois ela apenas está lá, o sujeito, barrado pela lei, constrói, em sua “inocência”, um objeto para se agarrar. Assim, o objeto a estará plantado em sua fantasia para sustentar o seu desejo. No seminário VI, Lacan (2016, p. 100), conceitualiza o objeto a como o objeto que se vincula à pulsão:
É porque ela se situa aí, essa articulação do sujeito com o objeto, que o objeto ocorre ser essa alguma coisa que não é o correlativo e o correspondente de uma necessidade do sujeito, mas essa alguma coisa que suporta o sujeito precisamente no momento em que ele tem de fazer face, se podemos dizer, à sua existência, que suporta o sujeito na sua existência, na sua existência no sentido mais radical, ou seja justamente que ele existe na linguagem; quer dizer que ele consiste em qualquer coisa que está fora dele, em algo que ele não pode agarrar na sua natureza própria de linguagem senão no momento preciso em que ele, como sujeito, se deve apagar, se desvanecer, desaparecer atrás de um significante, o que é precisamente o ponto, se pode-se dizer, 'pânico' em torno do qual ele tem de se agarrar a algo – e é justamente ao objeto enquanto objeto do desejo que ele se agarra.
O conceito de objeto a, nos ensinos de Lacan, ganhará novas dimensões, mas em sua relação com das Ding, podemos dizer que é aquilo que faz frente à falta inscrita no psiquismo, por meio do qual o encontro com o objeto é sempre um reencontro.
NA PRÁTICA
Agora, traremos exemplos clínicos para complementar o entendimento da teoria. Para vislumbrar a repetição como um fenômeno presente em experiência clínica, vamos demarcar alguns recortes.
Na escolha de objeto de amor, podemos verificar que o sujeito busca, inconscientemente, resgatar em seus parceiros algo de sua primeira relação amorosa, ou seja, mãe-bebê. Mesmo que para a menina a referência imaginária ao pai possa ser mais evidenciada, em análise, impreterivelmente encontramos algo dessa relação que retorna, e, uma nova relação de amor.
Outro exemplo de repetição pode ser evidenciado na própria transferência com o analista. Em alguns casos, o paciente, às vezes na entrevista, traz como queixa: “Eu não dou continuidade a nada, tudo que eu começo eu não termino”. Tal fala pode ser um prenúncio: ele está dizendo que logo vai sair da análise. Portanto, cabe ao analista, em momento oportuno, trazer essa questão para a análise. Certa vez, uma analisante tinha uma queixa como essa. Quando ela começou a faltar, o tema foi trazido e a questão da falta de continuidade foi associada ao modo como os seus pais tratavam as suas questões na infância, pois tudo era tido como sem importância, sem comprometimento. Por exemplo, ela teve que iniciar várias vezes o catecismo, até fazer a primeira comunhão, pois seus pais sempre interrompiam o curso, por falta de comprometimento de levá-la. Assim, vários outros eventos surgiram em análise. Assim, verificamos que o não comprometimento dos pais se repetia agora em sua vida adulta.
Por último, escolhemos trazer um modelo de repetição que chega nos consultórios com os dizeres de uma maldição hereditária. Muitas mulheres se queixam de que na família todas se casaram com homens alcoólatras – uma repetição que podemos localizar no registro real, por se tratar de uma vivência traumática. Para que essa repetição possa cessar, é preciso que, em análise ela possa ser simbolizada, de modo que aquilo que volta para o mesmo lugar possa se ligar a um objeto. Trata-se de uma construção de análise que barra o gozo desconhecido do sujeito.
A clínica psicanalítica é a clínica do real, ou seja, acolhe aquilo que está para além da linguagem.
FINALIZANDO
- Tópico 1: a repetição foi concebida como um fenômeno clínico ao longo da experiência clínica de Freud. Em Recordar, repetir e elaborar, Freud define a repetição como resistência que impede a associação livre. Anos depois, no texto O estranho, a repetição será pensada por Freud como algo que deveria permanecer em oculto, mas se manifesta, causando estranheza.
- Tópico 2: Lacan situa a repetição como um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Ele distingue a repetição do conceito de transferência. Lacan ainda introduz a dimensão do real da repetição como aquilo que jamais será recordado, pois está fora da linguagem.
- Tópico 3: portanto, para Lacan, a repetição se distingue em duas faces: autômaton, que surge na cadeia significante, como uma insistência dos signos; e tiquê, que está para além do autômaton, vinculada ao registro real.
- Tópico 4: a pulsão vai ser relida por Lacan como seguimento da pulsão de morte. Afinal, tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte almejam, em última análise, das Ding.
- Tópico 5: das Ding é o objeto que se inscreve no psiquismo como falta, produzindo força constante da pulsão. Por ser inalcançável, o sujeito fixa em sua fantasia o objeto a, que satisfaz parcialmente a pulsão e sustenta o desejo do sujeito.
REFERÊNCIAS
FINK, B. A causa real da repetição. In: _____. Para ler o seminário II de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
FREUD, S. O estranho. In: _____, Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. XVII.
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