CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM PSICANÁLISE
AULA 6
Prof.ª Juliana Santos
CONVERSA INICIAL
Nesta abordagem, retomaremos o movimento empreendido por Lacan, que ficou para nós, psicanalistas em permanente formação, um eterno convite de retorno a Freud. Então, aqui vai a lição número 1: ninguém é psicanalista sem estudar Freud, sendo assim, o sentido psicanalítico deve sempre ser retomado desde Freud.
Para empreendermos esse caminho trilhado por Lacan, é necessário que venhamos a compreender as suas reais motivações a liderar esse movimento. Depois, vamos dar mais uns passos em seus ensinos, focando nos conceitos fundamentais em psicanálise.
Lacan, do início ao fim do seu ensino, sempre fez questão de demonstrar o seu posicionamento freudiano. Em uma de suas últimas apresentações em Caracas, em 1980, ele afirmou: “cabe a vocês serem lacanianos, se quiserem. Quanto a mim sou freudiano.” (Roudinesco, 1988, p. 720, citada por Kupermann, 2012, p. 133).
Portanto, a referência a Freud está em todos os ensinos de Lacan. Contudo, após o seminário 11, algo mudou. Miller (1997, p. 21), genro de Lacan e responsável pelos seus direitos autorais, no livro Para ler o seminário 11, nos indica que nos primeiros dez anos dos seminários de Lacan, ele sempre adotou um texto de Freud para embasar o seu ensino, por exemplo: no primeiro ano – seminário 1, foram os escritos técnicos de Freud; no terceiro ano – seminário 3, as psicoses, foi o caso Schreber; no seminário 7, a ética da psicanálise, foi “O mal-estar na civilização”, entretanto, nesse seminário Lacan não fez isso, nem nos seminários seguintes.
Assim, o seminário 11 representa um corte nos ensinos de Lacan, e para entendermos a relevância desse momento, faremos inicialmente uma breve jornada sobre esse período, trazendo o contexto que fez Lacan redigir, por meio de sua releitura de Freud, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Por fim, trabalharemos a definição lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem, em que, para fundamentar a sua tese, ele se utiliza dos conceitos linguísticos “significante” e “significado”.
TEMA 1 – DA “EXCOMUNHÃO” AO RETORNO A FREUD
Lacan nomeia de “excomunhão” a abertura do seminário 11. O motivo de ele ter escolhido esse nome para a abertura do seu seminário diz respeito à situação que ele estava vivenciando naquele momento.
“Excomunhão” é um termo da igreja católica usado para excluir uma pessoa dos ritos religiosos quando esta pratica algum tipo de heresia. Então, Lacan comparou a International Psychoanalytical Association (IPA) a uma instituição religiosa, sobre a qual declara (1964, p. 11, grifo do autor):
Que meu ensino, designado como tal, sofre por parte de um organismo que se chama Comissão Executiva de uma organização internacional que se chama Internacional Psychoanalytical Association, uma censura que não é de modo algum ordinário, pois que se trata de nada menos que proscrever esse ensino – que deve ser considerado nulo em tudo que dele possa vir quanto à habilitação de um psicanalista, e de fazer dessa proscrição a condição da afiliação internacional da sociedade psicanalítica a qual pertenço. Isto ainda não é bastante. Está formulado que essa afiliação só será aceita se derem garantias de que, jamais, meu ensino possa, por essa sociedade, voltar a atividade para a formação de analistas. Trata-se, portanto, de algo que é propriamente comparável ao que se chama, em outros lugares, excomunhão maior.
Miller (1997), ao comentar essa passagem, lembra-nos de que Lacan, ao contrário do que muitos acreditam, não foi expulso da IPA. O que ocorreu, de fato, é que, em 1953, juntamente com outros colegas, Lacan decidiu deixar o instituto francês, a Société Psychanalytique de Paris, pois, para ele, a instituição seguia um rumo autoritário. Em seguida, pediram para que seus ensinos fossem reconhecidos pela IPA, para que pudesse inaugurar a sua própria escola.
A IPA é um grande “guarda-chuva” que abriga outras sociedades de psicanálise, dando a ela a legitimidade de atuarem como uma sociedade de ensino e formação de psicanalistas. Foi nesse sentido que Lacan buscou a IPA, para ter seus ensinos reconhecidos. Pois, conforme Miller (1997) nos descreve, isso já havia ocorrido em Nova York, quando, após uma cisão de uma sociedade, um grupo abriu em seguida sua escola e teve seus ensinos reconhecidos pela IPA; entretanto, o mesmo não ocorrera com Lacan.
Em 1963, Marie Bonaparte, integrante do comitê central e amiga de Anna Freud, Hartmann, entre outros, convenceu o comitê a recusar Lacan, enviando-lhe uma carta na qual lamentavam muito, mas, uma vez que este tinha deixado o instituto francês, já não era mais membro da IPA (Miller, 1997, p. 18).
Assim, o seminário 11 trata-se de um seminário que representa um novo começo para Lacan e no qual, segundo Miller, ele se coloca à prova, pois se indaga: “estou qualificado (para dar esse seminário)?” – sendo que antes já havia ministrado, durante dez anos, dez seminários. Contudo, declara: “considero este problema adiado por ora” (Lacan, citado por Miller, 1997, p. 19).
De fato, o seminário 11 trata de alguém que está recomeçando e, entre os 10 seminários anteriores e este, há um corte que aponta para um novo começo, ou seja, não é uma continuidade. Foi entre o capítulo 19 e 20 do seminário 11 que Lacan funda a Escola Freudiana de Paris. Assim, para Miller, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise pareceram-lhe um tributo a Freud, uma vez que são tirados diretamente da obra freudiana, além da atribuição do nome Escola Freudiana à sua instituição. Lacan deseja demonstrar que ele não poderia ser colocado como um dissidente, mas que também não poderia parar apenas no que tinha sido deixado por Freud, visto que, em seu tributo, ele caminhou para ir além de Freud. Explica Miller (1997, p. 20):
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise parece ser um tributo a Freud, uma vez que os quatro conceitos são tirados diretamente de sua obra. Assim como Lacan, na época, chama sua instituição de Escola Freudiana, em seu seminário utiliza o termo “conceitos freudianos” apenas para provar que não é um dissidente. Mas, dentro deste “tributo”, ele tenta ir além de Freud. Não um além que deixe Freud para trás: trata-se de um além de Freud que mesmo assim está em Freud: Lacan está à procura de alguma coisa na obra de Freud de que o próprio Freud não se deu conta. Algo que podemos chamar de “extimidade”, já que é tão íntimo que Freud mesmo não o percebeu. Tão íntimo que essa intimidade é extimidade. É um mais-além interno.
Portanto, ao enfatizar os quatro conceitos fundamentais da psicanálise em seu seminário, Lacan questionou o posicionamento da IPA e denunciou a rejeição dos conceitos, visto que, segundo Lacan, a IPA estava mais preocupada em manter um rigor doutrinário do que em manter o sentido conceitual da teoria freudiana.
Desse modo, quando Lacan, em seu seminário, faz algumas perguntas de forma retórica sobre algumas questões da psicanálise, Miller sinaliza para algo a mais que deve ser escutado:
A que dizem respeito as fórmulas na psicanálise? O que é que motiva e modula esse deslizamento do objeto? Existem conceitos analíticos de uma vez por todas formados? A manutenção quase religiosa dos termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica, a que te remete ela? Tratar-se-ia de um fato muito surpreendente na história das ciências – o de que Freud seria o primeiro, e permaneceria o único, nesta suposta ciência, a ter introduzido conceitos fundamentais? (Lacan, citado por Miller 1997, p. 20- 21)
Assim, ao oferecer um seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan se pergunta se realmente os conceitos de Freud devem permanecer sendo os únicos válidos em psicanálise.
Ao se confrontar com tais indagações, Lacan se autoriza e introduz seus próprios conceitos. De acordo com Miller (1997, p. 21), trata-se, portanto, do seminário 11, o verdadeiro início dos ensinos de Lacan:
No interior dessas questões epistemológicas e dessa celebração de Freud, vemos assim não um desprestígio de Freud, mas o que poderíamos chamar de uma substituição. Uma espécie de reescrita de Freud, uma versão de Freud que Lacan adota; mas isso é feito em segredo, ou ao menos discretamente, porque ao mesmo tempo ele tem de provar que é o verdadeiro herdeiro de Freud. A isso se poderia chamar de estratégia do seminário.
O Seminário 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise – foi mais do que uma espécie de resgate da obra de Freud, mas também o momento de reinvenção do próprio Lacan, sendo a negativa da IPA um ato que o levou a fundar a sua escola de psicanálise.
TEMA 2 – QUATROS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE
Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, tratados por Lacan no seminário 11, são: inconsciente, repetição, transferência e pulsão.
O caro conceito freudiano de inconsciente, naquele momento, descreve Miller (1997), estava sendo completamente negligenciado pelos psicólogos do eu, a ponto de não ser considerado um conceito fundamental. Usando as próprias palavras de Miller (1997, p. 21): “eles não sabem o que fazer com o inconsciente porque consideram que a primeira tópica de Freud – inconsciente, pré-consciente, consciente – foi completamente superada pela segunda tópica – eu, supereu e isso.”
Assim, para Miller (1997, p. 22), o seminário 11, de um lado, objetiva a “revitalização ou celebração de Freud” e, de outro, introduz um novo modo de compreensão sobre a psicanálise, em que o autor afirma encontrar uma “nova fundação da psicanálise.”
Para Miller (1997), o modo como Lacan abordou os quatro conceitos empreendeu quatro novas formas de ler o inconsciente, visto que, de fato, existem quatro maneiras distintas de compreender o que se passa em uma análise, portanto, o que foi abordado por Lacan se aproxima da prática analítica.
“O que é falar?" Como compreendemos o fenômeno da fala em análise? Lacan privilegia as falhas, optando por definir o inconsciente – e esta é somente uma definição, dentre muitas – como “tropeço, desfalecimento, rachadura. Aqui ele está muito próximo da primeira descoberta de Freud, uma descoberta rejeitada pelos psicólogos do eu, que acham que Freud não sabia tanto quanto eles. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente.” (Lacan, citado por Miller 1997, p. 22, grifo do autor)
As referências de Lacan se aproximaram dos textos de Freud: Interpretação dos sonhos; Psicopatologia da vida cotidiana; e Chistes e sua relação com o inconsciente. Contudo, os analistas freudianos estavam sendo atraídos pelos fenômenos. O caminho apontado por Lacan tentava demonstrar que, na experiência analítica, algo ocorre de forma invertida, pelo qual “isso” é quando ocorre um lapso ou uma falha, visto que é aí o lugar em que encontramos o sujeito.
O sujeito do inconsciente, subscrito no ensino de Lacan, portanto, é algo que se encontra entre o ser e o nada, um estranho tipo de ser que aparece quando não deveria: precisamente quando uma intenção estranha está sendo realizada, conclui Miller (1997, p. 23).
Outra forma pela qual Lacan nos ensina a ler o inconsciente é por meio da repetição, que vai ser apresentada no seminário 11, em sua articulação de significante. Essa articulação já tinha sido apontada por Freud, pois em sua prática ele pôde se dar conta daquilo que, na fala de seus pacientes, se repetia em seus sonhos e na própria prática da associação livre (S1-S2).
Porém, o que Lacan enfatiza de forma mais radical é que o inconsciente não resiste tanto quanto repete. Portanto, isso ia na contramão do que diziam em sua época, pois a práxis fundamental do movimento da psicologia do eu estava completamente apegada à afirmação de que “o inconsciente resiste”, de modo que o caminho do tratamento se dava pela superação das resistências.
Assim, a repetição é a tese defendida por Lacan no seminário 11, em que afirma que “a constituição mesma do campo do inconsciente se garante pelo Wiederkehr” (Lacan 1964, p. 53). E afirma, ainda, que é aí que Freud garante a sua grandeza.
Sobre a transferência, Lacan a considera como um aspecto do inconsciente, portanto não é a mesma coisa que uma repetição. Se, em Freud, verificamos que a transferência é uma modalidade da repetição, para Lacan não. Ele distingue a transferência da repetição, propondo, assim, uma nova teoria da transferência. Miller (1997, p. 24) faz uma ressalva, e pontua que, para compreendermos a transferência no seminário 11, temos que ligar a transferência a uma realidade ilusória, e a repetição ao real, ou seja, como aquilo que não engana. Assim, “quando se apresenta o inconsciente com transferência; ele é apresentado como algo que ilude e engana.” Essa é a explicação para quando Lacan declara que a verdade tem uma estrutura ficcional e que se revela nas falas sobre transferência. Desse modo, a transferência pode ser conectada à realidade psíquica do sujeito.
O último conceito fundamental ensinado por Lacan no seminário 11 é o inconsciente como pulsão. A pulsão foi um dos conceitos mais trabalhados por Lacan em todo o seu ensino. Como sabemos, a pulsão é uma força constante que busca ser satisfeita pelo avassalador, onipotente princípio do prazer, como afirma Miller (1997, p. 25). Ela é alguma coisa que não muda, que requer todo o nosso sonho e toda a nossa vigília, mas que é, ainda assim, prazer. Em última análise, para Lacan, o sujeito, em algum nível, está sempre feliz, sempre tendo prazer. Foi isso que Freud (1920) defendeu em seu texto Além do princípio do prazer que, de alguma maneira, mesmo que por meio de uma aparente infelicidade ou desprazer, o sujeito estará sempre em busca de satisfação, cujo alcance é o gozo.
No próximo tópico, buscaremos compreender as incisões de Lacan sobre o conceito de inconsciente. Sabemos que ele, por intermédio da ciência linguística, pôde fazer grandes contribuições à teoria psicanalítica: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
TEMA 3 – INCONSCIENTE LACANIANO
O inconsciente foi uma descoberta de Freud. Mesmo que o uso do termo já fosse empregado, foi Freud que concebeu o seu funcionamento. A releitura dos conceitos feita por Lacan fez surgir um pensamento inteiramente novo, embora este fosse, surpreendentemente, o que já estava em Freud. Portanto, trata-se de uma interpretação genuína daquilo que Freud escreveu, o que Lacan pôde explicar.
Para Coutinho Jorge (2005, p. 65), Lacan trouxe de volta a originalidade implicada nos pensamentos freudianos e ressaltou o segmento nuclear de sua obra – o inconsciente como linguagem. No texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan (1953) resgata o campo da linguagem na psicanálise, pois como já mencionamos, os psicanalistas daquela época haviam se afastado do principal preceito freudiano – a fala – e se orientavam mais pelos fenômenos.
Assim, ao afirmar que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, Lacan evidencia o único meio pelo qual a psicanálise pode operar – pela palavra do analisando.
Lacan evidencia que o inconsciente é um saber, revogando o sentido do saber introduzido por Descartes, visto que o saber inconsciente é um saber que não se sabe, ou seja, escapa à razão. Coutinho Jorge (2005, p. 66) ainda destaca que, para Lacan, o ato falho é, com efeito, um ato bem-sucedido, pois é por meio dele que a verdade do sujeito se desvela ainda que à sua revelia.
Nesse sentido, Coutinho Jorge (2005) cita Jean-Jacques Moscovitz, que chamou a atenção para o termo “inconsciente” em alemão – Unbewusste. Em sua tradução literal, significa “incabível”, ou seja, a consciência é um saber que se sabe e o inconsciente um saber que não se sabe.
Portanto, nos ensinos de Lacan encontramos inúmeras demonstrações em que ele assinala o saber do inconsciente. Coutinho Jorge (2005) o destaca pela distinção do instinto dos animais, em que o saber inconsciente é aquilo que surge para encobrir essa falta nos seres humanos: “o ser humano manifestamente não tem nenhum saber instintual”, sendo assim, “só há o inconsciente para dar corpo ao instinto.” (Lacan, citado por Jorge, p. 67). Desse modo, Lacan concebe o saber do inconsciente como o saber que preenche a falta do saber instintual, ou, dito de outro modo, a maneira pela qual somos levados a reagir em certas circunstâncias está ligada não a um instinto, mas ao saber do inconsciente, um saber que está veiculado aos significantes. No gráfico a seguir, Coutinho Jorge (2005, p. 68) tenta esquematizar o saber do inconsciente:

Portanto, Lacan ratifica o saber do inconsciente e afirma que o sujeito sabe sem saber que sabe. É desse saber que o psicanalista se vale.
TEMA 4 – O INSCONSCIENTE É ESTRUTURADO COMO LINGUAGEM
Vimos então que o inconsciente é um saber que encobre a falta de instinto no ser humano. Mas, se ele não nasce com esse saber, como este último se constitui? Podemos responder a essa pergunta com o famoso aforisma lacaniano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Vamos entender, a seguir, o que isso significa.
Lacan valeu-se da linguística na busca de dar um caráter científico à psicanálise, pois ele almejava dar contornos sólidos ao situar o sujeito do inconsciente, visto que o inconsciente freudiano foi alvo de muitas críticas. “A linguística pode servir-nos de guia neste ponto, já que é esse o papel que ela desempenha na vanguarda da antropologia contemporânea, e não poderíamos ficar-lhe indiferentes.” (Lacan, 1953, p. 286).
Contudo, ao tomar emprestado o saber linguístico defendido por Ferdinand de Saussure, Lacan faz uma inversão de valores, pois é nesse momento que ele consegue exprimir sua tese.
4.1 LACAN X SAUSSURE
Em Saussure, vemos que os signos são estruturados em duas instâncias – significante e significado –, de modo que o significante obedece nitidamente a ordem do significado, consentindo por meio deles um signo: “o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” (Saussure, 1916, p. 80). Nesse sentido, para Saussure havia uma reciprocidade biunívoca entre essas instâncias do signo, em que o signo se torna a relação entre um significado e um significante.
Joël Dor (1989, p. 29) em seu livro Introdução à leitura de Lacan, apresenta o gráfico do modelo saussuriano:

No modelo saussuriano, conforme é possível observar pelas setas, conceito e imagem acústica estão atrelados. O conceito tem o valor do significado, e a imagem acústica tem o valor do significante, estando eles representados por s e S. O signo é o resultado dessa conjunção entre significado e significante. Contudo, Saussure aponta para quatro princípios que regem o signo; destacaremos dois: arbitrariedade e caráter linear do significante.
A arbitrariedade atinge o signo em sua totalidade, ou seja, a arbitrariedade do signo reside essencialmente por seu caráter convencional, que se explica pelas inúmeras línguas, em que os mesmos conceitos alcançam diferentes sons, como também pela pluralidade de significados que um mesmo significante pode ter. Já o caráter linear do significante atinge especificamente o significante, visto que, em seu caráter linear, este, sendo de natureza auditiva, se desdobra com o passar do tempo, se tornando uma propriedade de fala.
Contudo, Dor (1989, p. 37) assinala que nem sempre a delimitação de elementos significativos é possível, a não ser que ela seja tomada isoladamente, visto que o princípio biunívoco (α - α’; β - β’...) confirma a ideia de delimitação, garantindo um signo. Entretanto, nem sempre isso é possível, dado que uma imagem acústica pode se articular em dois significantes:

Dessa forma, faz-se necessário considerar o contexto para que o signo seja delimitado. Dor (1989, p. 37) declara que é o mesmo que dizer que o signo só é signo em função do contexto. “Ora, esse contexto é um conjunto de outros signos. A realidade do signo linguístico só existe, pois, em função de todos os outros signos, sendo esta propriedade a que Saussure nomeou de valor do signo”. Em referência a esse tema, Coutinho Jorge (2005, p. 78) explica assim:
Assim, a noção de valor revela, por um lado, que os elementos que compõem o signo são interdependentes entre si e, por outro, que o signo não pode ser isolado do sistema do qual faz parte e do qual também é interdependente. Sendo a língua um sistema cujos termos são solitários, o valor de uma palavra dependerá da significação que lhe confere a presença de todas as palavras do código como também a presença de todos os elementos da frase.
Portanto, observa-se que a língua elabora as suas unidades ao constituir-se entre duas massas amorfas, e o signo linguístico corresponde a uma articulação entre duas massas amorfas entre si, em que uma ideia se fixa no som, ao mesmo tempo que uma sequência fônica se constitui como significante de uma ideia. “A língua é comparável a uma folha de papel. O pensamento é a face, e o som o verso; não se pode cortar a face sem cortar ao mesmo tempo o verso; assim também, na língua, não poderíamos isolar o som do pensamento, nem o pensamento do som”. (Saussure, citado por Dor, 1989, p. 38).
Desse modo, na linguística o surgimento do significante só é possível com a intervenção de um corte, visto que na realidade não existe um fluxo de significantes. Portanto, é por meio de uma intervenção que surge o significante, e ao mesmo tempo que ele surge, se associa a um conceito. “O surgimento do significante é, pois, indissociável do engendramento do signo linguístico em sua totalidade.” (Dor, 1989, p. 38).
Lacan, por sua vez, ao tomar a tese saussuriana, vai de imediato trazer um novo entendimento; ele inverte o esquema do signo linguístico, em cuja justificativa apoia a sua declaração: “o inconsciente é o discurso do Outro”. Desse modo, a fala está referida ao discurso do sujeito, bem como ao Outro como lugar de alteridade do significante. Assim, o significado não poderia ser posto junto ao significante.
A situação estabelecida por Lacan decorre da própria experiência analítica que demonstra que a relação do significante com o significado está sempre prestes a se desfazer. Assim, a ideia de um “corte” que uniria o significante ao significado, ao mesmo tempo que determina ambos, não se sustentaria. Portanto, ele introduz no lugar do corte um conceito original – o ponto-de-basta.
Dessa forma, enquanto em Saussure a unidade da significação é determinada por uma série de corte simultânea (α/α’; β/β’; ϒ/ ϒ’), em Lacan a significação é dada ao conjunto de sequência falada. Nesse sentido, Dor (1989, p. 40) cita Lacan em a Subversão do sujeito: “Vocês encontram a função diacrônica desse ponto-de-estofo (ou ponto-de-basta) na frase, na medida em que esta só fecha sua significação com seu último termo, cada termo sendo antecipado na construção de todos os outros e, inversamente, selando seu sentido por seu efeito retroativo.”
Assim, nos ensinos de Lacan vemos que é sempre retroativamente que um signo faz sentido, de modo que a significação surge ao final de sua própria articulação significante.
TEMA 5 – PRIMAZIA DO SIGNIFICANTE
A compreensão de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem o trouxe para uma materialidade humana, visto que quebra qualquer corrente mística a esse respeito. O inconsciente se encontra nas palavras enunciadas pelo sujeito e é estruturado como linguagem, pois é dessa maneira que ele se avoluma e ganha a sua dimensão na psique humana.
Contudo, a frase lacaniana afirma que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, ou seja, pelas mesmas leis da linguagem, mas Lacan propõe a diferença. No lugar do gráfico apresentado por Saussure, Lacan subverte o entendimento e inscreve a primazia do significante, retira o círculo que o envolvia e designava a sua unidade de signo, como também remove as flechas que indicavam que eram indissociáveis o significante e o significado, ficando assim:

A experiência analítica demonstra que o significante governa o discurso, e quem fala não tem acesso livre ao significado, pois ele está separado daquele pela barra do recalque que separa o significante do significado. Assim, a barra que aparece nesse algoritmo não é a mesma que se coloca para representar a relação do significante com o significado, mas sim que separa o significante de seu efeito de significado. Com efeito, Lacan implica a função do significante com o fundamento da dimensão do simbólico, visto que tudo que é significável se encontra no lugar do Outro, ou seja, na linguagem.
A primazia do significante sobre o significado é reveladora do fato de que, no inconsciente, o significado é abolido, e o significante é o que representa de modo soberano o sujeito para outro significante. Com essa definição aparentemente circular, na qual o elemento que é definido (o significante) surge na própria definição (é o que representa o sujeito para outro significante). (Jorge, 2005, p. 82)
Portanto, o significado surge deslizando na cadeia significante, de modo que o deslizamento entre os dois produz o ponto-de-basta, o qual se enlaça ao significado e significante no discurso analítico, no papel de metáfora e metonímia.
5.1 CADEIA SIGNIFICANTE, SIGNIFICANTES E SIGNIFICADO
Lacan só conseguiu explicitar por meios científicos aquilo que Freud já tinha traçado em seus textos. Por isso, ao compreendermos tais noções dadas por Lacan, teremos mais facilidade para ler Freud. Visando facilitar uma compreensão a respeito desses conceitos, vamos tentar explicá-los de forma breve, visto que vamos nos aprofundar nesse tema mais adiante.
O significante é, primeiramente, o significante da falta no Outro, ou seja, é o efeito de linguagem que se introduz para encobrir a castração. Conforme já devemos ter ouvido, quando uma criança está aprendendo a falar, é importante que os pais não tentem interpretar o que o filho quer, mas deixar a criança no vazio para tentar dizer o que quer, pois isso facilita a produção de linguagem. É mais ou menos isso o que Lacan insere sobre o conceito do significante, ele é efeito de linguagem e surge para encobrir a falta, uma falta simbólica.
No entanto, o significante sozinho não significa nada, todavia, quando é articulado com outros significantes, ele produz a significação. “Ora, a estrutura do significante está, como se diz comumente da linguagem, em ele ser articulado” (Lacan, 1957, p. 504). Essa sequência orientada na organização significante que Lacan designa como cadeia significante, ou seja, são as associações e combinações de significantes, diz Lacan, que fornecem uma aproximação, como de anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis (Lacan, 1957, p. 505).
A origem da cadeia significante vai ser explicada por Lacan por meio da metáfora paterna, em que o desejo-da-mãe é metaforizado pelo significante do nome-do-pai, produzindo uma significação fálica. A partir daí, os significantes conscientes e inconscientes são tecidos em conjunto por intermédio das leis da linguagem: metonímia e metáfora, as duas funções que geram significados.
Portanto, a cadeia significante designa uma função: inserir o desejo inconsciente do sujeito em seu discurso. Assim, a estrutura é posta em desenhos, e sua trama de gozo tecida em sua fala. De modo mais geral, a cadeia significante está envolvida em toda causalidade psíquica.
Leitura complementar
Para se aprofundar nesse tema, recomendamos a leitura do livro de Joël Dor Introdução à leitura lacaniana: o inconsciente estruturado como linguagem.
NA PRÁTICA
Poderíamos chamar nosso estudo de introdução aos conceitos fundamentais em psicanálise, pois nossa intenção, aqui, foi de apenas apontar para os temas fundamentais, visto que são conceitos que demandam tempo de cada um para elaborá-los e, assim, poder compreendê-los. Eles não se esgotam apenas pelo estudo da teoria, mas imprescindivelmente devem passar pela experiência de análise.
Assim, ao finalizarmos esta abordagem com a questão do inconsciente estruturado como uma linguagem, gostaríamos de deixar o convite para que pensemos sobre o porquê de uma formação em psicanálise. Assim, podemos ouvir quais são os significantes que norteiam essa decisão. De posse desses significantes, como eles se associam com a nossa vida e o nosso ser?
Quando conseguirmos fazer essas associações, acreditamos que estaremos mais próximos do real significado que nos trouxe até aqui. E aí, para que possamos nos apropriar desse sentido, busquemos a análise pessoal, pois, por meio desse percurso poderemos, pouco a pouco, nos autorizar na posição de analista.
FINALIZANDO
No tópico 1, nos reportamos ao momento de ruptura de Lacan com a IPA, a partir do qual Lacan se autoriza ir para além de Freud, sem com isso deixar de tê-lo como referência.
No tópico 2, vimos que o resgate dos conceitos fundamentais – inconsciente, repetição, transferência e pulsão – tinha o objetivo, para além de resgatá-los do esquecimento do sentido dado por Freud, afirmar perante a sociedade de psicanálise a sua posição freudiana.
No tópico 3, apontamos que, segundo Lacan, o inconsciente é um saber não sabido pelo sujeito, sendo o saber do inconsciente que recobre a falta de instinto no humano.
No tópico 4, o inconsciente estruturado como linguagem trouxe mais cientificidade para o conceito de inconsciente, pois é possível localizá-lo na fala, visto que ele obedece às mesmas leis de linguagem.
No tópico 5, Lacan, ao inverter a ordem do algoritmo, estabelece a primazia do significante para o sujeito. O significante compõe a cadeia significante do discurso falado do sujeito, sendo sua relação de significante com outro significante que produz a significação, que não está dada.
REFERÊNCIAS
DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. v. 1.
KUPERMANN, D. Um sonho de final de mestrado ou A transferência e o saber na institucionalização da psicanálise. TransForm. Psicol., São Paulo, v. 4, n. 1, 2012.
LACAN, J. (1953). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: _____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____ (1957). Função e campo da fala e da linguagem. In: _____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____ (1964). Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2020.
MILLER, J. A. Contextos e conceitos. In: _____. Para ler o Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
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