Neuroanatomia: Estudo da estrutura e organização do sistema nervoso, incluindo os diferentes lobos cerebrais, áreas corticais e conexões entre eles.
Neurofisiologia: Investigação das funções e atividades elétricas e químicas do sistema nervoso, incluindo como os neurônios se comunicam.
Neuropsicologia clínica: Concentra-se na avaliação e tratamento de indivíduos com distúrbios neurológicos, como lesões cerebrais traumáticas, acidentes vasculares cerebrais (AVCs), tumores cerebrais, doenças neurodegenerativas (como Alzheimer e Parkinson) e epilepsia.
Neuropsicologia cognitiva: Estuda como diferentes funções cognitivas (memória, atenção, linguagem, percepção, entre outras) são processadas pelo cérebro e como podem ser afetadas por danos cerebrais.
Neuropsicologia do desenvolvimento: Analisa como o cérebro e as funções cognitivas se desenvolvem ao longo da infância e adolescência, bem como os efeitos de danos cerebrais nesses estágios.
Neuropsicologia experimental: Realiza pesquisas para entender melhor os processos cognitivos, emocionais e comportamentais em indivíduos saudáveis e em condições neurológicas específicas.
A neuropsicologia usa várias técnicas para investigar o cérebro e o comportamento, incluindo testes neuropsicológicos, ressonância magnética funcional (fMRI), eletroencefalografia (EEG), entre outras.
Os neuropsicólogos trabalham em estreita colaboração com outros profissionais de saúde, como neurologistas, psiquiatras e terapeutas, para auxiliar no diagnóstico, tratamento e reabilitação de pacientes com distúrbios neurológicos.
É importante destacar que a neuropsicologia tem contribuído significativamente para a compreensão das funções cerebrais e tem sido fundamental no desenvolvimento de abordagens terapêuticas eficazes para pessoas com lesões ou doenças neurológicas.
Conclusão:
Neuropsicologia vai além com a neuropsicanalise sendo âmbito da psicanalise Freud sendo neurologista e tendo aprimorado sempre seus estudos trás grande contribuição e de suma importância pra alem da neuropsicanalise, psicanalise, e psicologia , temos a metapsicologia , estudada na psicanálise com maior ênfase do que na psicologia mas que eras muitas contribuições e indiretamente resultados pra pesquisas compreenssão dos aspectos de usabilidade e aplicação maior da neuropsicóloga sendo vista de forma abrangente e personalizando o tratamento de cada paciente com assertividade maior e melhor viabilidade sócio financeira e quebrando as questões de preconceito da saude mental ser coisa de “doido”.
Nesta abordagem, retomaremos o movimento empreendido por Lacan, que ficou para nós, psicanalistas em permanente formação, um eterno convite de retorno a Freud. Então, aqui vai a lição número 1: ninguém é psicanalista sem estudar Freud, sendo assim, o sentido psicanalítico deve sempre ser retomado desde Freud.
Para empreendermos esse caminho trilhado por Lacan, é necessário que venhamos a compreender as suas reais motivações a liderar esse movimento. Depois, vamos dar mais uns passos em seus ensinos, focando nos conceitos fundamentais em psicanálise.
Lacan, do início ao fim do seu ensino, sempre fez questão de demonstrar o seu posicionamento freudiano. Em uma de suas últimas apresentações em Caracas, em 1980, ele afirmou: “cabe a vocês serem lacanianos, se quiserem. Quanto a mim sou freudiano.” (Roudinesco, 1988, p. 720, citada por Kupermann, 2012, p. 133).
Portanto, a referência a Freud está em todos os ensinos de Lacan. Contudo, após o seminário 11, algo mudou. Miller (1997, p. 21), genro de Lacan e responsável pelos seus direitos autorais, no livro Para ler o seminário 11, nos indica que nos primeiros dez anos dos seminários de Lacan, ele sempre adotou um texto de Freud para embasar o seu ensino, por exemplo: no primeiro ano – seminário 1, foram os escritos técnicos de Freud; no terceiro ano – seminário 3, as psicoses, foi o caso Schreber; no seminário 7, a ética da psicanálise, foi “O mal-estar na civilização”, entretanto, nesse seminário Lacan não fez isso, nem nos seminários seguintes.
Assim, o seminário 11 representa um corte nos ensinos de Lacan, e para entendermos a relevância desse momento, faremos inicialmente uma breve jornada sobre esse período, trazendo o contexto que fez Lacan redigir, por meio de sua releitura de Freud, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Por fim, trabalharemos a definição lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem, em que, para fundamentar a sua tese, ele se utiliza dos conceitos linguísticos “significante” e “significado”.
TEMA 1 – DA “EXCOMUNHÃO” AO RETORNO A FREUD
Lacan nomeia de “excomunhão” a abertura do seminário 11. O motivo de ele ter escolhido esse nome para a abertura do seu seminário diz respeito à situação que ele estava vivenciando naquele momento.
“Excomunhão” é um termo da igreja católica usado para excluir uma pessoa dos ritos religiosos quando esta pratica algum tipo de heresia. Então, Lacan comparou a International Psychoanalytical Association (IPA) a uma instituição religiosa, sobre a qual declara (1964, p. 11, grifo do autor):
Que meu ensino, designado como tal, sofre por parte de um organismo que se chama Comissão Executiva de uma organização internacional que se chama Internacional Psychoanalytical Association, uma censura que não é de modo algum ordinário, pois que se trata de nada menos que proscrever esse ensino – que deve ser considerado nulo em tudo que dele possa vir quanto à habilitação de um psicanalista, e de fazer dessa proscrição a condição da afiliação internacional da sociedade psicanalítica a qual pertenço. Isto ainda não é bastante. Está formulado que essa afiliação só será aceita se derem garantias de que, jamais, meu ensino possa, por essa sociedade, voltar a atividade para a formação de analistas. Trata-se, portanto, de algo que é propriamente comparável ao que se chama, em outros lugares, excomunhão maior.
Miller (1997), ao comentar essa passagem, lembra-nos de que Lacan, ao contrário do que muitos acreditam, não foi expulso da IPA. O que ocorreu, de fato, é que, em 1953, juntamente com outros colegas, Lacan decidiu deixar o instituto francês, a Société Psychanalytique de Paris, pois, para ele, a instituição seguia um rumo autoritário. Em seguida, pediram para que seus ensinos fossem reconhecidos pela IPA, para que pudesse inaugurar a sua própria escola.
A IPA é um grande “guarda-chuva” que abriga outras sociedades de psicanálise, dando a ela a legitimidade de atuarem como uma sociedade de ensino e formação de psicanalistas. Foi nesse sentido que Lacan buscou a IPA, para ter seus ensinos reconhecidos. Pois, conforme Miller (1997) nos descreve, isso já havia ocorrido em Nova York, quando, após uma cisão de uma sociedade, um grupo abriu em seguida sua escola e teve seus ensinos reconhecidos pela IPA; entretanto, o mesmo não ocorrera com Lacan.
Em 1963, Marie Bonaparte, integrante do comitê central e amiga de Anna Freud, Hartmann, entre outros, convenceu o comitê a recusar Lacan, enviando-lhe uma carta na qual lamentavam muito, mas, uma vez que este tinha deixado o instituto francês, já não era mais membro da IPA (Miller, 1997, p. 18).
Assim, o seminário 11 trata-se de um seminário que representa um novo começo para Lacan e no qual, segundo Miller, ele se coloca à prova, pois se indaga: “estou qualificado (para dar esse seminário)?” – sendo que antes já havia ministrado, durante dez anos, dez seminários. Contudo, declara: “considero este problema adiado por ora” (Lacan, citado por Miller, 1997, p. 19).
De fato, o seminário 11 trata de alguém que está recomeçando e, entre os 10 seminários anteriores e este, há um corte que aponta para um novo começo, ou seja, não é uma continuidade. Foi entre o capítulo 19 e 20 do seminário 11 que Lacan funda a Escola Freudiana de Paris. Assim, para Miller, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise pareceram-lhe um tributo a Freud, uma vez que são tirados diretamente da obra freudiana, além da atribuição do nome Escola Freudiana à sua instituição. Lacan deseja demonstrar que ele não poderia ser colocado como um dissidente, mas que também não poderia parar apenas no que tinha sido deixado por Freud, visto que, em seu tributo, ele caminhou para ir além de Freud. Explica Miller (1997, p. 20):
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise parece ser um tributo a Freud, uma vez que os quatro conceitos são tirados diretamente de sua obra. Assim como Lacan, na época, chama sua instituição de Escola Freudiana, em seu seminário utiliza o termo “conceitos freudianos” apenas para provar que não é um dissidente. Mas, dentro deste “tributo”, ele tenta ir além de Freud. Não um além que deixe Freud para trás: trata-se de um além de Freud que mesmo assim está em Freud: Lacan está à procura de alguma coisa na obra de Freud de que o próprio Freud não se deu conta. Algo que podemos chamar de “extimidade”, já que é tão íntimo que Freud mesmo não o percebeu. Tão íntimo que essa intimidade é extimidade. É um mais-além interno.
Portanto, ao enfatizar os quatro conceitos fundamentais da psicanálise em seu seminário, Lacan questionou o posicionamento da IPA e denunciou a rejeição dos conceitos, visto que, segundo Lacan, a IPA estava mais preocupada em manter um rigor doutrinário do que em manter o sentido conceitual da teoria freudiana.
Desse modo, quando Lacan, em seu seminário, faz algumas perguntas de forma retórica sobre algumas questões da psicanálise, Miller sinaliza para algo a mais que deve ser escutado:
A que dizem respeito as fórmulas na psicanálise? O que é que motiva e modula esse deslizamento do objeto? Existem conceitos analíticos de uma vez por todas formados? A manutenção quase religiosa dos termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica, a que te remete ela? Tratar-se-ia de um fato muito surpreendente na história das ciências – o de que Freud seria o primeiro, e permaneceria o único, nesta suposta ciência, a ter introduzido conceitos fundamentais? (Lacan, citado por Miller 1997, p. 20- 21)
Assim, ao oferecer um seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan se pergunta se realmente os conceitos de Freud devem permanecer sendo os únicos válidos em psicanálise.
Ao se confrontar com tais indagações, Lacan se autoriza e introduz seus próprios conceitos. De acordo com Miller (1997, p. 21), trata-se, portanto, do seminário 11, o verdadeiro início dos ensinos de Lacan:
No interior dessas questões epistemológicas e dessa celebração de Freud, vemos assim não um desprestígio de Freud, mas o que poderíamos chamar de uma substituição. Uma espécie de reescrita de Freud, uma versão de Freud que Lacan adota; mas isso é feito em segredo, ou ao menos discretamente, porque ao mesmo tempo ele tem de provar que é o verdadeiro herdeiro de Freud. A isso se poderia chamar de estratégia do seminário.
O Seminário 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise – foi mais do que uma espécie de resgate da obra de Freud, mas também o momento de reinvenção do próprio Lacan, sendo a negativa da IPA um ato que o levou a fundar a sua escola de psicanálise.
TEMA 2 – QUATROS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE
Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, tratados por Lacan no seminário 11, são: inconsciente, repetição, transferência e pulsão.
O caro conceito freudiano de inconsciente, naquele momento, descreve Miller (1997), estava sendo completamente negligenciado pelos psicólogos do eu, a ponto de não ser considerado um conceito fundamental. Usando as próprias palavras de Miller (1997, p. 21): “eles não sabem o que fazer com o inconsciente porque consideram que a primeira tópica de Freud – inconsciente, pré-consciente, consciente – foi completamente superada pela segunda tópica – eu, supereu e isso.”
Assim, para Miller (1997, p. 22), o seminário 11, de um lado, objetiva a “revitalização ou celebração de Freud” e, de outro, introduz um novo modo de compreensão sobre a psicanálise, em que o autor afirma encontrar uma “nova fundação da psicanálise.”
Para Miller (1997), o modo como Lacan abordou os quatro conceitos empreendeu quatro novas formas de ler o inconsciente, visto que, de fato, existem quatro maneiras distintas de compreender o que se passa em uma análise, portanto, o que foi abordado por Lacan se aproxima da prática analítica.
“O que é falar?" Como compreendemos o fenômeno da fala em análise? Lacan privilegia as falhas, optando por definir o inconsciente – e esta é somente uma definição, dentre muitas – como “tropeço, desfalecimento, rachadura. Aqui ele está muito próximo da primeira descoberta de Freud, uma descoberta rejeitada pelos psicólogos do eu, que acham que Freud não sabia tanto quanto eles. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente.” (Lacan, citado por Miller 1997, p. 22, grifo do autor)
As referências de Lacan se aproximaram dos textos de Freud: Interpretação dos sonhos; Psicopatologia da vida cotidiana; e Chistes e sua relação com o inconsciente. Contudo, os analistas freudianos estavam sendo atraídos pelos fenômenos. O caminho apontado por Lacan tentava demonstrar que, na experiência analítica, algo ocorre de forma invertida, pelo qual “isso” é quando ocorre um lapso ou uma falha, visto que é aí o lugar em que encontramos o sujeito.
O sujeito do inconsciente, subscrito no ensino de Lacan, portanto, é algo que se encontra entre o ser e o nada, um estranho tipo de ser que aparece quando não deveria: precisamente quando uma intenção estranha está sendo realizada, conclui Miller (1997, p. 23).
Outra forma pela qual Lacan nos ensina a ler o inconsciente é por meio da repetição, que vai ser apresentada no seminário 11, em sua articulação de significante. Essa articulação já tinha sido apontada por Freud, pois em sua prática ele pôde se dar conta daquilo que, na fala de seus pacientes, se repetia em seus sonhos e na própria prática da associação livre (S1-S2).
Porém, o que Lacan enfatiza de forma mais radical é que o inconsciente não resiste tanto quanto repete. Portanto, isso ia na contramão do que diziam em sua época, pois a práxis fundamental do movimento da psicologia do eu estava completamente apegada à afirmação de que “o inconsciente resiste”, de modo que o caminho do tratamento se dava pela superação das resistências.
Assim, a repetição é a tese defendida por Lacan no seminário 11, em que afirma que “a constituição mesma do campo do inconsciente se garante pelo Wiederkehr” (Lacan 1964, p. 53). E afirma, ainda, que é aí que Freud garante a sua grandeza.
Sobre a transferência, Lacan a considera como um aspecto do inconsciente, portanto não é a mesma coisa que uma repetição. Se, em Freud, verificamos que a transferência é uma modalidade da repetição, para Lacan não. Ele distingue a transferência da repetição, propondo, assim, uma nova teoria da transferência. Miller (1997, p. 24) faz uma ressalva, e pontua que, para compreendermos a transferência no seminário 11, temos que ligar a transferência a uma realidade ilusória, e a repetição ao real, ou seja, como aquilo que não engana. Assim, “quando se apresenta o inconsciente com transferência; ele é apresentado como algo que ilude e engana.” Essa é a explicação para quando Lacan declara que a verdade tem uma estrutura ficcional e que se revela nas falas sobre transferência. Desse modo, a transferência pode ser conectada à realidade psíquica do sujeito.
O último conceito fundamental ensinado por Lacan no seminário 11 é o inconsciente como pulsão. A pulsão foi um dos conceitos mais trabalhados por Lacan em todo o seu ensino. Como sabemos, a pulsão é uma força constante que busca ser satisfeita pelo avassalador, onipotente princípio do prazer, como afirma Miller (1997, p. 25). Ela é alguma coisa que não muda, que requer todo o nosso sonho e toda a nossa vigília, mas que é, ainda assim, prazer. Em última análise, para Lacan, o sujeito, em algum nível, está sempre feliz, sempre tendo prazer. Foi isso que Freud (1920) defendeu em seu texto Além do princípio do prazer que, de alguma maneira, mesmo que por meio de uma aparente infelicidade ou desprazer, o sujeito estará sempre em busca de satisfação, cujo alcance é o gozo.
No próximo tópico, buscaremos compreender as incisões de Lacan sobre o conceito de inconsciente. Sabemos que ele, por intermédio da ciência linguística, pôde fazer grandes contribuições à teoria psicanalítica: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
TEMA 3 – INCONSCIENTE LACANIANO
O inconsciente foi uma descoberta de Freud. Mesmo que o uso do termo já fosse empregado, foi Freud que concebeu o seu funcionamento. A releitura dos conceitos feita por Lacan fez surgir um pensamento inteiramente novo, embora este fosse, surpreendentemente, o que já estava em Freud. Portanto, trata-se de uma interpretação genuína daquilo que Freud escreveu, o que Lacan pôde explicar.
Para Coutinho Jorge (2005, p. 65), Lacan trouxe de volta a originalidade implicada nos pensamentos freudianos e ressaltou o segmento nuclear de sua obra – o inconsciente como linguagem. No texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan (1953) resgata o campo da linguagem na psicanálise, pois como já mencionamos, os psicanalistas daquela época haviam se afastado do principal preceito freudiano – a fala – e se orientavam mais pelos fenômenos.
Assim, ao afirmar que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, Lacan evidencia o único meio pelo qual a psicanálise pode operar – pela palavra do analisando.
Lacan evidencia que o inconsciente é um saber, revogando o sentido do saber introduzido por Descartes, visto que o saber inconsciente é um saber que não se sabe, ou seja, escapa à razão. Coutinho Jorge (2005, p. 66) ainda destaca que, para Lacan, o ato falho é, com efeito, um ato bem-sucedido, pois é por meio dele que a verdade do sujeito se desvela ainda que à sua revelia.
Nesse sentido, Coutinho Jorge (2005) cita Jean-Jacques Moscovitz, que chamou a atenção para o termo “inconsciente” em alemão – Unbewusste. Em sua tradução literal, significa “incabível”, ou seja, a consciência é um saber que se sabe e o inconsciente um saber que não se sabe.
Portanto, nos ensinos de Lacan encontramos inúmeras demonstrações em que ele assinala o saber do inconsciente. Coutinho Jorge (2005) o destaca pela distinção do instinto dos animais, em que o saber inconsciente é aquilo que surge para encobrir essa falta nos seres humanos: “o ser humano manifestamente não tem nenhum saber instintual”, sendo assim, “só há o inconsciente para dar corpo ao instinto.” (Lacan, citado por Jorge, p. 67). Desse modo, Lacan concebe o saber do inconsciente como o saber que preenche a falta do saber instintual, ou, dito de outro modo, a maneira pela qual somos levados a reagir em certas circunstâncias está ligada não a um instinto, mas ao saber do inconsciente, um saber que está veiculado aos significantes. No gráfico a seguir, Coutinho Jorge (2005, p. 68) tenta esquematizar o saber do inconsciente:
Portanto, Lacan ratifica o saber do inconsciente e afirma que o sujeito sabe sem saber que sabe. É desse saber que o psicanalista se vale.
TEMA 4 – O INSCONSCIENTE É ESTRUTURADO COMO LINGUAGEM
Vimos então que o inconsciente é um saber que encobre a falta de instinto no ser humano. Mas, se ele não nasce com esse saber, como este último se constitui? Podemos responder a essa pergunta com o famoso aforisma lacaniano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Vamos entender, a seguir, o que isso significa.
Lacan valeu-se da linguística na busca de dar um caráter científico à psicanálise, pois ele almejava dar contornos sólidos ao situar o sujeito do inconsciente, visto que o inconsciente freudiano foi alvo de muitas críticas. “A linguística pode servir-nos de guia neste ponto, já que é esse o papel que ela desempenha na vanguarda da antropologia contemporânea, e não poderíamos ficar-lhe indiferentes.” (Lacan, 1953, p. 286).
Contudo, ao tomar emprestado o saber linguístico defendido por Ferdinand de Saussure, Lacan faz uma inversão de valores, pois é nesse momento que ele consegue exprimir sua tese.
4.1 LACAN X SAUSSURE
Em Saussure, vemos que os signos são estruturados em duas instâncias – significante e significado –, de modo que o significante obedece nitidamente a ordem do significado, consentindo por meio deles um signo: “o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” (Saussure, 1916, p. 80). Nesse sentido, para Saussure havia uma reciprocidade biunívoca entre essas instâncias do signo, em que o signo se torna a relação entre um significado e um significante.
Joël Dor (1989, p. 29) em seu livro Introdução à leitura de Lacan, apresenta o gráfico do modelo saussuriano:
No modelo saussuriano, conforme é possível observar pelas setas, conceito e imagem acústica estão atrelados. O conceito tem o valor do significado, e a imagem acústica tem o valor do significante, estando eles representados por s e S. O signo é o resultado dessa conjunção entre significado e significante. Contudo, Saussure aponta para quatro princípios que regem o signo; destacaremos dois: arbitrariedade e caráter linear do significante.
A arbitrariedade atinge o signo em sua totalidade, ou seja, a arbitrariedade do signo reside essencialmente por seu caráter convencional, que se explica pelas inúmeras línguas, em que os mesmos conceitos alcançam diferentes sons, como também pela pluralidade de significados que um mesmo significante pode ter. Já o caráter linear do significante atinge especificamente o significante, visto que, em seu caráter linear, este, sendo de natureza auditiva, se desdobra com o passar do tempo, se tornando uma propriedade de fala.
Contudo, Dor (1989, p. 37) assinala que nem sempre a delimitação de elementos significativos é possível, a não ser que ela seja tomada isoladamente, visto que o princípio biunívoco (α - α’; β - β’...) confirma a ideia de delimitação, garantindo um signo. Entretanto, nem sempre isso é possível, dado que uma imagem acústica pode se articular em dois significantes:
Dessa forma, faz-se necessário considerar o contexto para que o signo seja delimitado. Dor (1989, p. 37) declara que é o mesmo que dizer que o signo só é signo em função do contexto. “Ora, esse contexto é um conjunto de outros signos. A realidade do signo linguístico só existe, pois, em função de todos os outros signos, sendo esta propriedade a que Saussure nomeou de valor do signo”. Em referência a esse tema, Coutinho Jorge (2005, p. 78) explica assim:
Assim, a noção de valor revela, por um lado, que os elementos que compõem o signo são interdependentes entre si e, por outro, que o signo não pode ser isolado do sistema do qual faz parte e do qual também é interdependente. Sendo a língua um sistema cujos termos são solitários, o valor de uma palavra dependerá da significação que lhe confere a presença de todas as palavras do código como também a presença de todos os elementos da frase.
Portanto, observa-se que a língua elabora as suas unidades ao constituir-se entre duas massas amorfas, e o signo linguístico corresponde a uma articulação entre duas massas amorfas entre si, em que uma ideia se fixa no som, ao mesmo tempo que uma sequência fônica se constitui como significante de uma ideia. “A língua é comparável a uma folha de papel. O pensamento é a face, e o som o verso; não se pode cortar a face sem cortar ao mesmo tempo o verso; assim também, na língua, não poderíamos isolar o som do pensamento, nem o pensamento do som”. (Saussure, citado por Dor, 1989, p. 38).
Desse modo, na linguística o surgimento do significante só é possível com a intervenção de um corte, visto que na realidade não existe um fluxo de significantes. Portanto, é por meio de uma intervenção que surge o significante, e ao mesmo tempo que ele surge, se associa a um conceito. “O surgimento do significante é, pois, indissociável do engendramento do signo linguístico em sua totalidade.” (Dor, 1989, p. 38).
Lacan, por sua vez, ao tomar a tese saussuriana, vai de imediato trazer um novo entendimento; ele inverte o esquema do signo linguístico, em cuja justificativa apoia a sua declaração: “o inconsciente é o discurso do Outro”. Desse modo, a fala está referida ao discurso do sujeito, bem como ao Outro como lugar de alteridade do significante. Assim, o significado não poderia ser posto junto ao significante.
A situação estabelecida por Lacan decorre da própria experiência analítica que demonstra que a relação do significante com o significado está sempre prestes a se desfazer. Assim, a ideia de um “corte” que uniria o significante ao significado, ao mesmo tempo que determina ambos, não se sustentaria. Portanto, ele introduz no lugar do corte um conceito original – o ponto-de-basta.
Dessa forma, enquanto em Saussure a unidade da significação é determinada por uma série de corte simultânea (α/α’; β/β’; ϒ/ ϒ’), em Lacan a significação é dada ao conjunto de sequência falada. Nesse sentido, Dor (1989, p. 40) cita Lacan em a Subversão do sujeito: “Vocês encontram a função diacrônica desse ponto-de-estofo (ou ponto-de-basta) na frase, na medida em que esta só fecha sua significação com seu último termo, cada termo sendo antecipado na construção de todos os outros e, inversamente, selando seu sentido por seu efeito retroativo.”
Assim, nos ensinos de Lacan vemos que é sempre retroativamente que um signo faz sentido, de modo que a significação surge ao final de sua própria articulação significante.
TEMA 5 – PRIMAZIA DO SIGNIFICANTE
A compreensão de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem o trouxe para uma materialidade humana, visto que quebra qualquer corrente mística a esse respeito. O inconsciente se encontra nas palavras enunciadas pelo sujeito e é estruturado como linguagem, pois é dessa maneira que ele se avoluma e ganha a sua dimensão na psique humana.
Contudo, a frase lacaniana afirma que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, ou seja, pelas mesmas leis da linguagem, mas Lacan propõe a diferença. No lugar do gráfico apresentado por Saussure, Lacan subverte o entendimento e inscreve a primazia do significante, retira o círculo que o envolvia e designava a sua unidade de signo, como também remove as flechas que indicavam que eram indissociáveis o significante e o significado, ficando assim:
A experiência analítica demonstra que o significante governa o discurso, e quem fala não tem acesso livre ao significado, pois ele está separado daquele pela barra do recalque que separa o significante do significado. Assim, a barra que aparece nesse algoritmo não é a mesma que se coloca para representar a relação do significante com o significado, mas sim que separa o significante de seu efeito de significado. Com efeito, Lacan implica a função do significante com o fundamento da dimensão do simbólico, visto que tudo que é significável se encontra no lugar do Outro, ou seja, na linguagem.
A primazia do significante sobre o significado é reveladora do fato de que, no inconsciente, o significado é abolido, e o significante é o que representa de modo soberano o sujeito para outro significante. Com essa definição aparentemente circular, na qual o elemento que é definido (o significante) surge na própria definição (é o que representa o sujeito para outro significante). (Jorge, 2005, p. 82)
Portanto, o significado surge deslizando na cadeia significante, de modo que o deslizamento entre os dois produz o ponto-de-basta, o qual se enlaça ao significado e significante no discurso analítico, no papel de metáfora e metonímia.
5.1 CADEIA SIGNIFICANTE, SIGNIFICANTES E SIGNIFICADO
Lacan só conseguiu explicitar por meios científicos aquilo que Freud já tinha traçado em seus textos. Por isso, ao compreendermos tais noções dadas por Lacan, teremos mais facilidade para ler Freud. Visando facilitar uma compreensão a respeito desses conceitos, vamos tentar explicá-los de forma breve, visto que vamos nos aprofundar nesse tema mais adiante.
O significante é, primeiramente, o significante da falta no Outro, ou seja, é o efeito de linguagem que se introduz para encobrir a castração. Conforme já devemos ter ouvido, quando uma criança está aprendendo a falar, é importante que os pais não tentem interpretar o que o filho quer, mas deixar a criança no vazio para tentar dizer o que quer, pois isso facilita a produção de linguagem. É mais ou menos isso o que Lacan insere sobre o conceito do significante, ele é efeito de linguagem e surge para encobrir a falta, uma falta simbólica.
No entanto, o significante sozinho não significa nada, todavia, quando é articulado com outros significantes, ele produz a significação. “Ora, a estrutura do significante está, como se diz comumente da linguagem, em ele ser articulado” (Lacan, 1957, p. 504). Essa sequência orientada na organização significante que Lacan designa como cadeia significante, ou seja, são as associações e combinações de significantes, diz Lacan, que fornecem uma aproximação, como de anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis (Lacan, 1957, p. 505).
A origem da cadeia significante vai ser explicada por Lacan por meio da metáfora paterna, em que o desejo-da-mãe é metaforizado pelo significante do nome-do-pai, produzindo uma significação fálica. A partir daí, os significantes conscientes e inconscientes são tecidos em conjunto por intermédio das leis da linguagem: metonímia e metáfora, as duas funções que geram significados.
Portanto, a cadeia significante designa uma função: inserir o desejo inconsciente do sujeito em seu discurso. Assim, a estrutura é posta em desenhos, e sua trama de gozo tecida em sua fala. De modo mais geral, a cadeia significante está envolvida em toda causalidade psíquica.
Leitura complementar
Para se aprofundar nesse tema, recomendamos a leitura do livro de Joël Dor Introdução à leitura lacaniana: o inconsciente estruturado como linguagem.
NA PRÁTICA
Poderíamos chamar nosso estudo de introdução aos conceitos fundamentais em psicanálise, pois nossa intenção, aqui, foi de apenas apontar para os temas fundamentais, visto que são conceitos que demandam tempo de cada um para elaborá-los e, assim, poder compreendê-los. Eles não se esgotam apenas pelo estudo da teoria, mas imprescindivelmente devem passar pela experiência de análise.
Assim, ao finalizarmos esta abordagem com a questão do inconsciente estruturado como uma linguagem, gostaríamos de deixar o convite para que pensemos sobre o porquê de uma formação em psicanálise. Assim, podemos ouvir quais são os significantes que norteiam essa decisão. De posse desses significantes, como eles se associam com a nossa vida e o nosso ser?
Quando conseguirmos fazer essas associações, acreditamos que estaremos mais próximos do real significado que nos trouxe até aqui. E aí, para que possamos nos apropriar desse sentido, busquemos a análise pessoal, pois, por meio desse percurso poderemos, pouco a pouco, nos autorizar na posição de analista.
FINALIZANDO
No tópico 1, nos reportamos ao momento de ruptura de Lacan com a IPA, a partir do qual Lacan se autoriza ir para além de Freud, sem com isso deixar de tê-lo como referência.
No tópico 2, vimos que o resgate dos conceitos fundamentais – inconsciente, repetição, transferência e pulsão – tinha o objetivo, para além de resgatá-los do esquecimento do sentido dado por Freud, afirmar perante a sociedade de psicanálise a sua posição freudiana.
No tópico 3, apontamos que, segundo Lacan, o inconsciente é um saber não sabido pelo sujeito, sendo o saber do inconsciente que recobre a falta de instinto no humano.
No tópico 4, o inconsciente estruturado como linguagem trouxe mais cientificidade para o conceito de inconsciente, pois é possível localizá-lo na fala, visto que ele obedece às mesmas leis de linguagem.
No tópico 5, Lacan, ao inverter a ordem do algoritmo, estabelece a primazia do significante para o sujeito. O significante compõe a cadeia significante do discurso falado do sujeito, sendo sua relação de significante com outro significante que produz a significação, que não está dada.
REFERÊNCIAS
DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. v. 1.
KUPERMANN, D. Um sonho de final de mestrado ou A transferência e o saber na institucionalização da psicanálise. TransForm. Psicol., São Paulo, v. 4, n. 1, 2012.
LACAN, J. (1953). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: _____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____ (1957). Função e campo da fala e da linguagem. In: _____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____ (1964). Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2020.
MILLER, J. A. Contextos e conceitos. In: _____. Para ler o Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
Nesta abordagem, estudaremos o tema da repetição. Como vimos anteriormente, a repetição é um fenômeno que foi observado por Freud em sua prática clínica.
Os pacientes, na maioria dos casos, ao invés de caminhar de acordo com o princípio de prazer, repetiam situações que em nenhuma instância psíquica haviam sido prazerosas.
Assim, ele chama de pulsão de morte a tendência que impele o sujeito a uma compulsão à repetição. Portanto, a pulsão de morte se opõe à pulsão de vida, que objetiva a satisfação sexual. Portanto, a esse novo dualismo pulsional, Freud deu a seguinte conotação:
Eros® pulsão de vida, equivale às pulsões sexuais, visa a imortalidade da vida pela procriação da espécie. A pulsão de vida está ligada a um objeto.
Tanatos® pulsão de morte, equivale a uma busca de eliminação total das tensões, pela qual tende ao retorno a um estado mítico originário, ou seja, um estado anterior à vida. A pulsão de morte não está ligada a um objeto, sendo uma energia solta no psiquismo.
Para chegar à compreensão da pulsão de morte, Freud estabeleceu uma linha de pensamento que tem início no texto Recordar, repetir e elaborar, de 1914. Depois, ele publica O estranho, de 1919, em que o tema da repetição é abordado por diferentes vieses, até concluir a sua elaboração final com a tese da pulsão de morte. Assim, no primeiro tópico vamos esclarecer essa linha de pensamento freudiano, a fim de compreender os seus avanços teóricos.
Em seguida, vamos trazer as contribuições de Lacan, que deram um novo rumo à escuta clínica, pelo desenvolvimento do conceito de repetição. Para alcançar o nosso objetivo, é importante compreender o modo como Lacan aborda o funcionamento psíquico. Assim, antes de seguir, preste atenção em nossas explicações preliminares.
Sabemos que Freud concebeu o funcionamento psíquico através de dois modelos do aparelho psíquico: a primeira tópica, dividida em 3 sistemas (inconsciente, consciente e pré-consciente), e a segunda tópica, dividida em instâncias (Eu, Supereu, com partes conscientes e inconscientes, e Isso, que engloba todo o inconsciente, onde se localiza o núcleo das pulsões).
Por sua vez, Lacan concebeu o funcionamento psíquico através de três registros: real, simbólico e imaginário.
Real: são as experiências vividas que não passam por simbolização, ou seja, não passam pela linguagem. Imagine um bebê quando nasce – ele vive muitas experiências que deixam registros em seu psiquismo, algumas delas serão simbolizadas, isto é, ganharão um sentido, um dizer sobre o vivido; mas outras nunca serão simbolizadas, ficarão no registro real.
Simbólico: são os registros simbolizados; contudo, esses registros são frutos de uma simbolização primeira, de uma lei, no qual o sujeito estará referido, trata-se do outro simbólico, lugar da lei e linguagem.
Imaginário: são os registros especulares da imagem que produz uma realidade psíquica para o sujeito a partir de sua relação com o real e o simbólico. Assim, o imaginário é aquilo que envolve o sentido e o simbólico, produzindo uma ilusão para o sujeito.
Não podemos seguir com Lacan sem a concepção desses três registros. Afinal, inclusive a repetição, como veremos, apresenta o alcance desses registros, de modo que existe algo que se repete que está no registro do real, razão pela qual o sujeito nunca poderá se recordar desse acontecimento. Nesse sentido, Lacan traz uma nova dimensão para o conceito de repetição na teoria psicanalítica. Dito tudo isso, vamos seguir em frente!
TEMA 1 – REPETIÇÃO NA TEORIA PSICANALÍTICA
No início de sua prática com a psicanálise, Freud observou que o sujeito portava uma verdade que não se oferecia docilmente à consciência. Esse material esquecido era exatamente o alvo do tratamento, pois, segundo Freud, a verdade da doença era apreendida por detrás desse esquecimento. Portanto, toda técnica utilizada até esse momento tinha como finalidade a rememoração.
No entanto, ao iniciar o tratamento da jovem Dora, Freud se confronta com um novo elemento, que seria decisivo para o futuro da psicanálise: a repetição. No texto Recordar, repetir e elaborar, Freud (1996c, p. 93), declara: “o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo”. A repetição passa a ser o novo referencial da escuta clínica, e nesse quadro a transferência ganha uma nova perspectiva (Freud, 1996c, p. 93):
Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual. Devemos estar preparados para descobrir, portanto, que o paciente se submete à compulsão, à repetição, que agora substitui o impulso a recordar, não apenas em sua atitudepessoal para com o médico, mas também em cada diferente atividade e relacionamento que podem ocupar sua vida...
Freud foi o primeiro a pensar o aspecto da repetição como um fenômeno clínico cuja fonte está na constituição do sujeito. Os protótipos infantis da relação de amor mãe-bebê serão posteriormente repetidos pelo sujeito em sua vida amorosa e até mesmo na dinâmica de transferência. Garcia-Roza (1986, p. 23) declara:
O que se repete são protótipos infantis, de tal forma que o analista, ao ser capturado nestas repetições, toma o lugar da imago paterna ou materna, dando lugar à transferência. Essa compulsão a repetir padrões arcaicos substitui a recordação, o que faz com que Freud identifique a repetição como uma resistência: "Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar”.
A repetição, portanto, ocupa um lugar de resistência que impede a associação livre, pois o sujeito atua sem saber que o faz. Por esse mesmo motivo, o material esquecido não é recuperado por meio de lembranças.
1.1 O ESTRANHO
Cinco anos depois, a questão da repetição seria retomada no artigo O estranho (Das Unheimlich). Freud (1996a, p. 220) aponta para um novo aspecto da repetição, o assustador familiar: "O estranho é aquela categoria aterrorizante que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar".
O ponto principal desse texto é o seguinte: a categoria de coisas ou acontecimentos que provoca um estranhamento, ou seja, produz angústia, tem uma proximidade ao que é familiar, mas que permaneceu oculto. Freud quer dizer com isso que aquilo que é absolutamente novo, ou seja, que jamais se deu na experiência, não pode ser temido. Nesse sentido, o estranho (Unheimlich) é algo que se repete. Garcia-Roza (1986, p. 25) declara:
O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente. O Unheimlich é uma repetição diferencial e não uma repetição do mesmo. Freud refere essa repetição à própria natureza das pulsões, "uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer".
Ao elaborar sobre a ideia do estranho, Freud nos apresenta uma pesquisa com diversas traduções da palavra Unheimlich: no francês é inquiétant, sinistre; no espanhol é sinistro; e no árabe e hebreu o estranho tem o mesmo sentido de demoníaco. A definição que Freud sublinha é a de Schelling, como algo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz (Freud, 1996a, p. 278). Portanto, a categoria do estranho explicita, em sua terminologia, aquilo que Freud define como o estranho familiar.
No mesmo artigo, Freud faz uma análise do conto “Homem da areia”, de Hoffman, que conta a história de Nataniel, uma criança cuja mãe, na hora de colocá-la na cama para dormir, dizia: “vá pra cama, porque o homem de areia está chegando”.
Nataniel, sempre curioso a respeito dessa personalidade, certa vez perguntou para a babá sobre a veracidade do homem de areia. Ela confirmou a sua existência, declarando que o homem de areia é perverso e gosta de jogar areia nos olhos das crianças até que eles saltem para fora da cabeça.
Nataniel ficou muito impressionado com a história contada pela babá. Ele passou a associar a figura do homem de areia ao advogado Copélio, um homem estranho que visitava o seu pai todas as noites.
Para o azar de Nataniel, uma vez foi flagrado espionando o seu pai no escritório com Copélio. Depois de um ano, o seu pai morreu em uma explosão durante uma dessas visitas, o que o deixou bastante perturbado.
Anos depois, Nataniel se tornaria um estudante universitário. Foi morar numa cidade universitária, onde adquiriu o hábito de espionar a casa do professor Spalanzani, que morava em frente à sua casa. Certa vez, com uma luneta, ele observava a filha do professor, a jovem Olimpia. Era uma moça bonita, mas estranha. Nataniel se apaixonou por ela, porém Olimpia era, na verdade, uma boneca criada pelo professor, cujos olhos tinham sido colocados por Copélio, o homem de areia.
Para Freud, a estranheza do conto se encontra em dois pontos: o ato de arrancar os olhos e a presença da boneca, que fomenta em Nataniel a dúvida sobre a sua natureza. Freud afirma que a incerteza intelectual sobre o autômato (a boneca) é irrelevante frente à estranheza do ato de arrancar os olhos, que pode ser relacionado ao terror da castração sentido pelas crianças. Nesse sentido, Freud estabelece uma ligação com o sentimento de estranheza ao recalcado:
Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras constituiria então o estranho. [...] Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso linguístico estendeu das Heimliche (doméstico, familiar) para o seu oposto, das Unheimliche; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão. (Freud, 1996a, p. 300)
Portanto, nesse texto Freud estabelece uma relação entre o sentimento de estranhamento com uma repetição involuntária, ou seja, uma compulsão a repetir, pelo que o estranho é apenas algo que se repete. Esse ponto é essencial para elucidar a noção de real na teoria lacaniana. Portanto, guardem com cuidado a noção de estranho familiar.
No ano seguinte, Freud (1920) alinhou as suas elaborações a respeito da repetição, chegando a uma formulação final no texto Mais além do princípio de prazer, onde concebe a noção de pulsão de morte, considerando a manifestação da compulsão à repetição.
TEMA 2 – REPETIÇÃO DE FREUD A LACAN
Lacan considera o conceito de repetição como um dos pilares fundamentais da psicanálise, pois as suas dimensões abrangem a teoria e a clínica. No entanto, Lacan busca primeiramente desfazer o mal-entendido, pois percebe que a repetição, em sua época, estava sendo tomada pelo mesmo viés da transferência. Garcia-Roza (1986, p. 22) sublinha esse fato:
Lacan observa que a afirmação segundo a qual a transferência é uma repetição tornou-se lugar comum, e que embora a repetição esteja presente na transferência, e que foi a propósito desta última que Freud abordou o tema da repetição. "o conceito de repetição nada tem a ver com o de transferência".
O que Lacan sublinha aqui é que natransferência ocorre uma repetição. O que se repete só faz sentido em uma relação transferencial com o analista. Portanto, são conceitos diferentes. Em seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan os distingue e os coloca em série ao lado do inconsciente e da pulsão.
2.1 DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DA REPETIÇÃO
Provavelmente você já ouviu que “nada se cria, tudo se copia!”. Analisando brevemente a história da humanidade, podemos concluir que estamos sempre a caminho de repetir o mesmo, como se estivéssemos em uma roda gigante, fadados a passar pelo mesmo lugar a cada volta.
A noção de repetição já estava na filosofia. É possível encontrar, em ditados populares, frases que fazem referência à repetição, por exemplo: “A felicidade é o desejo pela repetição”; “A vida é um eterno dejà-vu”; “Viemos do pó e ao pó voltaremos”...
A repetição, portanto, se coloca para todos, no discurso social, como um saber. Freud se dedicou a criar uma teoria que pudesse conceber um sentido lógico para a compreensão desse fenômeno tipicamente humano. Assim, o sentido mais radical de repetição foi alcançado através do conceito de pulsão de morte, a partir do qual Freud apresentou uma tendência a retornar ao estado inorgânico submetido ao princípio de nirvana.
Em seu Seminário 2, O eu na teoria de Freud (1954-55), Lacan faz uma releitura do texto Mais além do princípio de prazer, estabelecendo uma relação simbólica à pulsão de morte. Afinal, para Lacan, Freud, quando estabeleceu a pulsão de morte, estava vislumbrando na verdade uma morte simbólica do sujeito, e não a morte de alcance biológico. Coutinho Jorge (2010, p. 62), em referência a essa passagem, define que se trata de uma morte da “vivência humana, do intercâmbio humano, da intersubjetividade”, pois há algo no humano que coage o sujeito a sair dos limites da vida.
Portanto, Lacan apreende o tema da pulsão de morte pelo registro da ordem simbólica, isto é, pela dimensão da linguagem, por meio da qual, o registro de um mais além da vida só poder ser inscrito pela linguagem. Coutinho Jorge (2010, p. 63-64), descreve:
O próprio ser humano se acha, em parte, fora da vida, ele participa do instinto [pulsão] de morte. É só daí que ele pode abordar o registro da vida. Como a ordem simbólica apresenta uma relação de exterioridade em relação ao sujeito, Lacan a situa como a própria pulsão de morte, vendo nesta uma relação com o símbolo, “com esta fala que está no sujeito sem ser a fala do sujeito”.
Portanto, a repetição como manifestação da pulsão de morte, no início dos ensinamentos de Lacan, está relacionada ao vigor da ordem simbólica, ou seja, o que se repete é algo que foi vivido e censurado, e que por isso participa do registro simbólico de forma autonômica. “A linguagem está relacionada com a pulsão de morte na medida em que ela determina o ser falante mais além de sua condição de vivente” (Jorge, 2010, p. 62).
No entanto, a partir do seminário 11, Lacan (2008) introduz um novo entendimento ao conceito de repetição. Se até o momento a repetição estava associada ao rigor do registro simbólico, nesse momento de seu ensino, Lacan demonstra que existe algo que se repete e que jamais alcançará a lembrança; para além do simbólico, a repetição tem a sua origem no registro real. “O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita onde, a res cogitans, não o encontra” (Lacan, 2008, p. 55). Portanto, a repetição, pensada a partir do registro do real, traz uma nova dimensão ao aspecto da repetição, pois estaria para além daquilo que o sujeito repete como resistência à lembrança, tornando-se uma nova categoria de repetição, associada ao O estranho de Freud, por se tratar de algo familiar, ainda que indizível.
TEMA 3 – REPETIÇÃO COMO RESPOSTA DO REAL
Portanto, a partir do seminário 11, a repetição ganha a dimensão do real. Bruce Fink (1997) sublinha que o real da repetição é justamente aquilo que não consegue ser encontrado ou rememorado, que está excluído da cadeia significante, ainda que faça girar a cadeia significante ao redor: “O analisando dá voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão, mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho”.
No texto A carta roubada, de 1956, Lacan demonstra o funcionamento significante e sua insistência na cadeia significante, ou seja, a repetição situada na ordem simbólica. A carta roubada é uma história escrita em 1844 por Edgar Allan Poe. Conta o sucesso do detetive Dupin na recuperação de uma carta comprometedora endereçada à rainha. A carta havia sido furtada dos aposentos reais na presença do casal real pelo chantagista ministro D.
A investigação acerca da carta se configura através da modulação escópica dos olhares dos envolvidos, pois foi assim que o detetive Dupin conseguiu localizar a carta escondida na casa do ministro D, enxergando aquilo que nenhuma visão inquieta tinha visto até então. Afinal, a carta roubada havia sido deixada exposta justamente para enganar os olhares de quem a procurava. Contudo, Dupin, ao se dar conta do plano, dá o troco na mesma moeda, surrupiando a carta do surrupiador e deixando uma marca registrada de seu gesto exitoso.
A carta, portanto, é o agente da história, pelo qual todos os personagens se posicionam, ordenando três tempos e três olhares:
O olhar que nada vê;
O olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ter encoberto o que ele oculta;
O olhar que vê que os olhares anteriores deixam a descoberto o que é para esconder.
Através dessa analogia, Lacan aponta que a linguagem é o lugar do equívoco, ou seja, a fala falada se distancia da comunicação e da informação, assim como o olhar de quem está de posse do olhar da carta, que perde o olhar 2 e 3.
Assim, o sentido se volta ao mesmo lugar, ou seja, à repetição daquilo que se repete. O sujeito, na medida em que pensa, não o encontra, pois está radicalmente excluído, por se tratar de uma vivência para além da linguagem. Logo, para Lacan, a repetição envolve o "impossível de pensar" e o "impossível de dizer", mas que insiste e retorna à cadeia significante.
Isso significa que o sujeito não consegue estar de posse da totalidade, pois existe algo a mais na experiência, que está radicalmente excluído, ainda que essa totalidade não se exclui na repetição. Ou seja, como a ordem simbólica apresenta uma relação de exterioridade em relação ao sujeito, Lacan a situa como a própria pulsão de morte, enxergando uma relação com o símbolo, “com esta fala que está no sujeito sem ser a fala do sujeito” (Jorge, 2010, p. 64). Isto é, um para além da linguagem.
3.1 TIQUÊ E AUTÔMATON
Em Lacan, podemos situar dois aspectos da repetição, apontados no seminário 11: o autômaton, associado ao simbólico, e a tiquê, associada ao real. Esses termos foram emprestados do vocabulário de Aristóteles sobre princípios, na chamada teoria das quatro causas, exposta no Livro I da Metafísica, com respeito aos princípios ou fatores explicativos das coisas. O filósofo articula o tema em um conjunto mais amplo, considerando as distinções fundamentais de sua filosofia: essência-acidente, ato-potência e matéria-forma, no sentido de mostrar que a filosofia consiste fundamentalmente em uma indagação de princípios.
Nesse contexto, as noções de tyche e automaton estão associadas à noção de acaso, com referência a algo que acontece sem inteligibilidade da razão humana. A tyche designa uma causa oculta para a razão humana, enquanto o automaton refere-se uma causa acidental (Garcia-Roza, 1986, p. 39).
Lacan usa esses termos para definir os aspectos da repetição. O autômaton, como explica Fink (1997), corresponde ao desdobramento automático, no inconsciente, da cadeia significante (como o alinhamento dos signos que aparecem na rede α, β, ϒ, δ). Contudo, “o real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer" (Lacan, 2008).
Portanto, segundo Lacan, o autômaton está articulado ao simbólico, cuja repetição configura o seu aspecto de insistência automática das redes significantes, ou seja, de “insistência dos signos”. Garcia-Roza (1986, p. 42-43) complementa essa noção de insistência dos signos:
A insistência dos signos de que Lacan nos fala é a própria insistência do desejo; a articulação temporal entre os significantes constituindo-se como presença do desejo cujo objeto absoluto falta sempre. O objeto presente, ilusão do objeto absoluto, é o que constitui o imaginário, marcado pela decepção, pela negatividade, pela castração. Entre esses dois objetos – o presente ilusório e o ausente absoluto – é que vamos situar a função do real.
No real, temos a tiquê, que está para além do autômaton, pois nela está marcado o encontro com a falta. Afinal, o que se repete sob o jugo da tiquê está para além dos jogos dos signos. O seu retorno (no autômaton), por sua vez, está para além da fantasia. Ou seja, para além do que é regulado pelo princípio de prazer (o autômaton) há o real.
Assim, o real que se repete é a função que caracteriza a tiquê. O real se situa entre dois objetos – o presente ilusório e o ausente absoluto. Bruce Fink (1997, p. 241-42), traz um esclarecimento sobre esse assunto:
O real aqui é o nível de causalidade, o nível daquilo que interrompe o funcionamento tranquilo do autômaton, da seriação automática, sujeita à lei regular dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do analisando estão destinados a perder sempre o alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a interpretação analítica pode atingir a causa, levando o analisando a um encontro com o real: tiquê. O encontro com o real não está situado no nível do pensamento, mas no nível onde a "fala oracular" produz não-senso, aquilo que não pode ser pensamento.
Desse modo a repetição, como apresentada por Lacan, está articulada em duas vertentes: autômaton e tiquê, que se manifestam, para o sujeito, indissociável, entre o simbólico e real. A repetição é o fenômeno clínico da manifestação da pulsão.
TEMA 4 – PULSÃO NOS ENSINOS DE LACAN
Freud criou o conceito de pulsão para abordar a sexualidade humana. Porém, de acordo com o que vimos, o verdadeiro estatuto da pulsão só foi introduzido com a noção de pulsão de morte, como declara Jorge (2010, p. 121): “tudo se passa como se o conceito de pulsão fosse sendo construído na direção desse ponto de conclusão que é a pulsão de morte”.
Existia um esforço para isolar a parte patológica da estrutura, mas Freud teve que admitir certa dificuldade com esse trabalho, pois reconheceu que as duas espécies de pulsão (vida e morte) sempre se apresentam amalgamadas, ou seja, nunca estão em estado puro, mas sim intrincadas uma na outra. Nesse sentido, não haveria a possibilidade de atestar a patologia para uma delas, a não ser no desintrincamento dessa fusão, pelo qual a pulsão de morte se apresentaria em moldes destrutivos para a vida.
Assim, a pulsão de morte, em alguns momentos dos escritos freudianos, também é chamada de pulsão de destruição, pois tende a voltar ao estado de não ser. Lacan (2008), no ensino XIII do seminário 11, destaca a função do impossível da pulsão de morte, situando o real: “a questão sobre o possível, e o impossível não é forçosamente o contrário do possível, ou bem ainda, porque o oposto do possível é seguramente o real, seremos levados a definir o real como o impossível”.
Pelo fato de Freud não ter nomeado uma energia específica da pulsão de morte, pois a libido é a única energia das pulsões, no pretenso dualismo pulsional freudiano podemos situar desde aí um monismo. Nesse sentido, Lacan dará a seguinte interpretação a respeito das pulsões: toda pulsão é um seguimento da pulsão de morte.
Contudo, Lacan não põe em xeque o dualismo freudiano, pois definiu desde aí que a pulsão pode assumir diferentes qualidades. Assim, Jorge (2010, p. 31) destaca a característica fundamental que estabelece um denominador comum entre a pulsão de vida e a pulsão de morte: o seu caráter conservador.
Freud menciona então duas tendências que, embora aparentemente se oponham, são fruto dessa mesma característica comum: tendências conservadoras que incitam à repetição e tendências cuja ação se manifesta através de formação nova e evolução progressiva. Trata-se, para ele, de levar às últimas consequências a hipótese segundo a qual todas as pulsões se manifestam através da tendência a reproduzir o que já existe. Como já disse o poeta, “Lar é de onde se vem”.
No seminário VII, A ética da psicanálise, Lacan (2017) demonstra outra dimensão da pulsão de morte, que está para além da vontade de destruição, considerando a vontade de recomeço, do corte, que abre para o novo, convergindo com a pulsão de vida, mas para outro sentido. Continho Jorge (2010) aborda o tema a partir da figura a seguir.
Figura 1 - Pulsão e ser
Fonte: elaborado com base em Jorge, 2010.
Ou seja, a pulsão de morte é o que leva o sujeito e o que produz corte em uma cadeia significante; é o que produz o novo ao invés do mesmo, em oposição ao caminho feito pela pulsão de vida.
4.1 TODA PULSÃO É PULSÃO DE MORTE
Lacan inscreve o circuito da pulsão por um mesmo denominador, como descreve Freud: “uma força constante rumo a um alvo, à satisfação”. Porém, a satisfação da pulsão é impossível de ser obtida, pois o objeto de satisfação plena é o objeto que Freud chamou das Ding – “a coisa”. Ou seja, ele nunca existiu, pois trata-se de um objeto suposto pelo aparelho psíquico. Dessa forma, o máximo de satisfação que a pulsão é capaz de obter se liga aos objetos que oferecemos, mas logo ela quer outro e outro, sempre em busca de outra coisa, pois o que a pulsão quer é das Ding, mas o que recebe é o objeto a. Jorge (2010) nos apresenta dois gráficos que nos ajudam a compreender que toda pulsão é pulsão de morte.
Figura 2 – Pulsão: vida e morte
Fonte: elaborado com base em Jorge, 2010.
Figura 3 – Pulsão sexual e de morte
Fonte: elaborado com base em Jorge, 2010.
Oferecemos à pulsão os objetos para a sua satisfação, ainda que parcial, mas esses objetos em seguida já não a satisfazem, e ela passa a querer outro objeto: “Quero outro, quero outra coisa”. Afinal, o que de fato a pulsão visa é das Ding, mas o que ela recebe é o objeto a. “E a nossa vida cotidiana é feita disso, a vida humana é regida por esse vetor, tendendo a obter a absoluta satisfação, impossível de ser obtida. Esse é o dramático, se não o trágico, da existência humana” (Jorge, 2010, p. 134).
TEMA 5 – OBJETO DA PULSÃO
Vimos então que a pulsão se satisfaz parcialmente como objeto a, mas o que ela almeja de fato é das Ding. Mas o que são esses objetos da pulsão? Vamos ver a resposta dessa questão ao longo do curso, pois não se trata de uma resposta simples. Ela envolve conceitos variados, por se tratar de um objeto que faz parte da experiência singular de cada sujeito.
Freud introduz o conceito de das Ding no Projeto (Freud, 1996b). Das Ding significa “a coisa”, ou seja, é aquilo que nos é oferecido, mas não é coisa nenhuma, pois não se trata de algo em si. Das Ding se inscreve no psiquismo como algo que já esteve de posse do sujeito e foi perdido. Por tanto, a partir de Lacan (1960), das Ding não estará no campo da memória, nem da percepção, pois a sua relação se encontra com o objeto, a mãe. Assim, das Ding é da ordem daquilo que não é predicável, de modo que se mantém igual, enquanto perdido.
Eu costumo pensar em das Ding como sendo a totalidade da experiência da relação materna (mãe-bebê), algo dessa relação que escapa, permanecendo como uma incógnita para o ser do sujeito (o que foi isso?), deixando um espaço faltoso sobre aquilo que um dia foi pleno em si.
Para dar conta dessa falta inapreensível, pois ela apenas está lá, o sujeito, barrado pela lei, constrói, em sua “inocência”, um objeto para se agarrar. Assim, o objeto a estará plantado em sua fantasia para sustentar o seu desejo. No seminário VI, Lacan (2016, p. 100), conceitualiza o objeto a como o objeto que se vincula à pulsão:
É porque ela se situa aí, essa articulação do sujeito com o objeto, que o objeto ocorre ser essa alguma coisa que não é o correlativo e o correspondente de uma necessidade do sujeito, mas essa alguma coisa que suporta o sujeito precisamente no momento em que ele tem de fazer face, se podemos dizer, à sua existência, que suporta o sujeito na sua existência, na sua existência no sentido mais radical, ou seja justamente que ele existe na linguagem; quer dizer que ele consiste em qualquer coisa que está fora dele, em algo que ele não pode agarrar na sua natureza própria de linguagem senão no momento preciso em que ele, como sujeito, se deve apagar, se desvanecer, desaparecer atrás de um significante, o que é precisamente o ponto, se pode-se dizer, 'pânico' em torno do qual ele tem de se agarrar a algo – e é justamente ao objeto enquanto objeto do desejo que ele se agarra.
O conceito de objeto a, nos ensinos de Lacan, ganhará novas dimensões, mas em sua relação com das Ding, podemos dizer que é aquilo que faz frente à falta inscrita no psiquismo, por meio do qual o encontro com o objeto é sempre um reencontro.
NA PRÁTICA
Agora, traremos exemplos clínicos para complementar o entendimento da teoria. Para vislumbrar a repetição como um fenômeno presente em experiência clínica, vamos demarcar alguns recortes.
Na escolha de objeto de amor, podemos verificar que o sujeito busca, inconscientemente, resgatar em seus parceiros algo de sua primeira relação amorosa, ou seja, mãe-bebê. Mesmo que para a menina a referência imaginária ao pai possa ser mais evidenciada, em análise, impreterivelmente encontramos algo dessa relação que retorna, e, uma nova relação de amor.
Outro exemplo de repetição pode ser evidenciado na própria transferência com o analista. Em alguns casos, o paciente, às vezes na entrevista, traz como queixa: “Eu não dou continuidade a nada, tudo que eu começo eu não termino”. Tal fala pode ser um prenúncio: ele está dizendo que logo vai sair da análise. Portanto, cabe ao analista, em momento oportuno, trazer essa questão para a análise. Certa vez, uma analisante tinha uma queixa como essa. Quando ela começou a faltar, o tema foi trazido e a questão da falta de continuidade foi associada ao modo como os seus pais tratavam as suas questões na infância, pois tudo era tido como sem importância, sem comprometimento. Por exemplo, ela teve que iniciar várias vezes o catecismo, até fazer a primeira comunhão, pois seus pais sempre interrompiam o curso, por falta de comprometimento de levá-la. Assim, vários outros eventos surgiram em análise. Assim, verificamos que o não comprometimento dos pais se repetia agora em sua vida adulta.
Por último, escolhemos trazer um modelo de repetição que chega nos consultórios com os dizeres de uma maldição hereditária. Muitas mulheres se queixam de que na família todas se casaram com homens alcoólatras – uma repetição que podemos localizar no registro real, por se tratar de uma vivência traumática. Para que essa repetição possa cessar, é preciso que, em análise ela possa ser simbolizada, de modo que aquilo que volta para o mesmo lugar possa se ligar a um objeto. Trata-se de uma construção de análise que barra o gozo desconhecido do sujeito.
A clínica psicanalítica é a clínica do real, ou seja, acolhe aquilo que está para além da linguagem.
FINALIZANDO
Tópico 1: a repetição foi concebida como um fenômeno clínico ao longo da experiência clínica de Freud. Em Recordar, repetir e elaborar, Freud define a repetição como resistência que impede a associação livre. Anos depois, no texto O estranho, a repetição será pensada por Freud como algo que deveria permanecer em oculto, mas se manifesta, causando estranheza.
Tópico 2: Lacan situa a repetição como um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Ele distingue a repetição do conceito de transferência. Lacan ainda introduz a dimensão do real da repetição como aquilo que jamais será recordado, pois está fora da linguagem.
Tópico 3: portanto, para Lacan, a repetição se distingue em duas faces: autômaton, que surge na cadeia significante, como uma insistência dos signos; e tiquê, que está para além do autômaton, vinculada ao registro real.
Tópico 4: a pulsão vai ser relida por Lacan como seguimento da pulsão de morte. Afinal, tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte almejam, em última análise, das Ding.
Tópico 5:das Ding é o objeto que se inscreve no psiquismo como falta, produzindo força constante da pulsão. Por ser inalcançável, o sujeito fixa em sua fantasia o objeto a, que satisfaz parcialmente a pulsão e sustenta o desejo do sujeito.
REFERÊNCIAS
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LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
_____. O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Porto Alegre: Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2016.
_____. Seminário, livro 7: A ética da psicanálise – Rio de Janeiro: Zahar, 2017.